Parte de uma geração que não tem medo de investir no cinema de horror, pelo contrário, se valendo com propriedade e orgulho de elementos/características por alguns tidos como sintomas de marginalidade, Gabriela Amaral Almeida está lançando o seu primeiro longa-metragem, O Animal Cordial (2018). Mestre em literatura e cinema de horror pela UFBA (Brasil) e com especialização em roteiro pela Escuela Internacional de Cine y TV (EICTV) de Cuba, Gabriela já chamara atenção na seara dos curtas-metragens. Realizou Náufragos (2010, codirigido com Matheus Rocha), Uma Primavera (2011), A Mão que Afaga (2012), Terno (2013, codirigido com Luana Demange) e Estátua (2014). Agora, ela chega ao sempre concorrido circuito comercial com um slasher tingido de vermelho-sangue, bem ao gosto do subgênero. A trama gira em torno de um empresário que reage ao assalto em seu estabelecimento, propiciando uma onda de violências, físicas e psicológicas, recônditas sob o véu de cordialidade de uma classe média bruta. Conversamos com Gabriela por telefone sobre o processo e as inspirações. Confira.
No seu filme, sob a aparente cordialidade da classe média, repousam preconceitos, elitismos, traços nefastos que viram horror. O Animal Cordial surgiu de uma observação do real?
Pode-se dizer que sim. A centelha da ideia surgiu quando eu e a Luana Demange, autora comigo do argumento, estávamos num restaurante que fora assaltado uma semana antes. Pensamos nisso do medo ser vendido e incentivado como forma de controle social. Começamos a nos questionar, entre reflexões e criatividade, que tramas caberiam naquele lugar. Evidentemente, como sou parte dessa realidade que nos circunda, isso emana, de certa forma, do real. E o Brasil tem se revelado bem menos cordial do que gostaria de ser.
Durante as filmagens, houve espaço para improvisações?
Trabalho com os atores, mais ou menos, um mês antes das filmagens, não especificamente com o texto, mas partindo de todas as sensações e os estados internos. Esse processo é marcado por muita improvisação, performance e laboratório. Ali, há o entendimento da natureza dramatúrgica. O texto é apenas reflexo das raízes disso. Filmei em ordem cronológica, durante 21 dias, o que foi essencial para o desenvolvimento dos personagens. No meu entendimento, mudar roteiro é transformar arco, algo dessa importância. Agora, suprimir falas, calibrar diálogos, ritmos e respirações, por exemplo, é pura adequação do processo, no qual não há uma profunda transformação dramatúrgica. O roteiro é um documento a ser explorado e modificado, mas no instante do ensaio, não da filmagem.
A trilha me lembrou a de Laranja Mecânica, não apenas pela similaridade tonal, mas por conta da influência dela à atmosfera de tensão. Stanley Kubrick foi uma inspiração?
Todo mundo fala isso da trilha (risos), mas a inspiração não é bem essa. Ela é do Rafael Cavalcante, meu marido. Sua construção começou bem antes do natural. Rafael trabalhou comigo desde o roteiro, fazendo um levantamento de sonoridades, levando em consideração, posteriormente, a montagem e a edição de som. As principais referências diretas dele foram o Angelo Badalamenti, que trabalha com o David Lynch, e Vangelis, que fez a trilha de Blade Runner: O Caçador de Androides (1982). O que interessou ao Rafael foi o aspecto sintético da música. Ele não utilizou instrumentos orgânicos, permitindo um reflexo dos personagens.
A que você atribui o interesse de uma nova geração do cinema brasileiro pela exploração dos gêneros, especialmente o horror?
É uma geração que cresceu vendo filme de locadora, uma galera mais aberta, conectada e disposta a utilizar essas referencias sem vergonha, pelo contrário, com bastante orgulho, fazendo mergulhos nas questões concernentes à sociedade, mas utilizando o que aprendeu lá atrás.
A equipe de O Animal Cordial é bastante feminina. Como percebe essas demandas crescentes por uma maior participação da mulher no nosso audiovisual?
Ainda acho muito pouco, além de ver tudo isso com certo cuidado. Tenho medo de que tais demandas sejam uma onda fomentadora mais da venda de produtos que realmente de uma readaptação da história com o objetivo de valorizar o olhar feminino. Então, comemoro, por um lado, e, por outro, observo com desconfiança, porque hoje tudo é mercado. Tenho receio de que o produto canse e a gente volte ao cânone masculino. Trabalho com pessoas que têm sensibilidade para entender tanto o masculino quanto o feminino. Não escolho meus colaboradores por gênero. Quero ao meu lado seres humanos que respeitem as individualidades.
O que você acha desse conceito “pós-horror”?
Também fico dividida. Por um lado, acho interessante que exista a discussão. Significa que o horror está na praça, incomodando, como gênero marginal. Essa tentativa de rebatiza-lo é histórica. Sempre que o horror produz narrativas profundas, tentam dar-lhe outro nome. Descordo da denominação “pós-horror” como indicio de que está surgindo um gênero novo. Não está. Continua sendo o belo e bom horror. Estamos num momento global em que o capitalismo deu errado bizarramente. Há monstruosidades no ar, propicias para gerar narrativas tensas, calcadas no medo e na angustia. Acho maravilhoso que as pessoas debatam o horror dessa forma, porque se coloca isso na mesa. Mas esses conceitos têm mais a ver com a noção de difusão e venda do que necessariamente com o âmbito artístico, de criação.
(Entrevista concedida por telefone, numa ponte São Paulo/Rio de Janeiro, em agosto de 2018)
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