No Brasil por conta da mostra que faz uma retrospectiva bastante ampla de seu trabalho – em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro e de São Paulo até o próximo dia 22, o fotojornalista e cineasta francês Raymond Depardon coloca em xeque os clichês sobre a idade avançada, enfrentando, aos 75 anos, uma bateria de entrevistas com a energia e a entrega de quem, como criador, observa tenazmente o comportamento humano. No lobby de um hotel luxuoso da zona sul carioca, mais especificamente à beira da praia, ele nos recebeu numa tarde de calor modorrento – sensação térmica superando os 40 graus – para falar de sua trajetória repleta de experiências. Nascido na zona rural, ou seja, no interior francês, ele não sabe muito bem de onde veio a sua curiosidade, aliás, alvo de questionamentos também por parte de seus pais, que foram buscar nas raízes familiares uma explicação plausível. Depardon apontou suas lentes para os mais diversos eventos, em cantos distintos do mundo. Cobriu conflitos, registrou o cotidiano, capturou as cores inerentes ao dia a dia campesino, entre outras recorrências que marcam seu legado fotográfico. Já enquanto cineasta, as instituições psiquiátricas, as engrenagens legais francesas e o campesinato (sempre ele) são temáticas comuns. Mas, talvez, extraindo o sumo dessas predileções, tenhamos um artista devotado essencialmente ao humano. Nesta conversa exclusiva ele conta um pouco sobre como é ser Raymond Depardon, verdadeira lenda viva que nos brinda, em meio ao papo, com um sorriso no rosto e uma disposição de dividir vivências.

 

Tanto no seu cinema quanto nas suas fotografias, a distância entre a câmera e o objeto é algo bastante expressivo. Isso vem da experiência como fotojornalista em conflitos?
Sem dúvida. Aliás, continuo sendo fotógrafo, pois uma coisa (cinema e fotografia) completa a outra, uma faz com que eu possa pensar melhor na outra. Como fotógrafo, tenho um lado muito século 19. Acredito que as coisas devam ser mostradas. Sempre pensei bastante nisso da distância, se devo me aproximar ou recuar. No que tange ao cinema, talvez tal reflexão me leve a fazer filmes simples, mais humanistas, essencialmente sobre pessoas. Acredito que esse ímpeto venha da minha história pessoal. Sou de uma família simples de agricultores. Meus pais eram camponeses. Não tive muita informação cinematográfica, mas desde os 10 ou 12 anos já era apaixonado por arte.

E de onde veio essa paixão?
Meus pais ficavam se questionando sobre isso. Aí, fuçaram na história do meu avô Auguste, que foi para Feira Universal de 1900 de trem. Eles deduziram que talvez eu tenha herdado desse avô a minha curiosidade. Nos anos 60 e 70 os cineastas tinham de ser engajados, esperava-se que eles denunciassem. E eu era simplesmente, pura e simplesmente, curioso. Queria entender filmando. Certa vez o Jean Rouch disse que filmo o que não sei, ou seja, na medida em que filmo, passo a entender as coisas. Sou uma pessoa muito pé no chão, exatamente como os camponeses. As imagens ditam os meus filmes, não as manipulo para que digam alguma coisa. As deixo se expressar. Esse é um lado meu um pouco primário e naïf. Meus filmes sobre psiquiatria, por exemplo, e até agora fiz três, acabam, de certa maneira e naturalmente, acompanhando as transformações da própria psiquiatria.

 

Fale um pouco sobre isso.
Dar-me conta de que refleti bastante sobre a clausura dos pacientes psiquiátricos, em três diferentes épocas, é muito estranho, porque, a priori, tive uma infância muito feliz (risos). Meus pais eram felizes. Talvez isso tenha vindo do meu passado de fotógrafo em Praga e no Chade. Fiquei um pouco preso, uma semana, mais ou menos. Guardo uma lembrança bem ruim disso (risos). Engraçado, pois questões relativas à liberdade fazem parte da quintessência do cinema, tanto do francês quanto do brasileiro. Nosso espírito de empreender é muito parecido e também o medo de ser enclausurado. Quanto mais tempo a gente fica aprisionado, maior a possibilidade de ficar louco. Como suportar tanto tempo trancafiado? Como manter a saúde mental? Me questiono.

 

Como define o seu trabalho, num âmbito geral?
Até os franceses têm dificuldade para me definir a partir do meu trabalho. Muitas vezes tenho ideias para filmes sobre a França em viagem, fora do país. Quando vou para o Chade, a sociedade francesa me parece tão clara. Acredito que, no fundo, os franceses não gostam muito de viajar e tampouco apreciam seu país. Já eu amo viajar e conheço bem a França (risos). Então as pessoas realmente ficam perdidas, perguntando:  “quem é esse cara?” (risos).

 

O senhor acredita que é função tanto do fotojornalista quanto do cineasta olhar para coisas que a gente cotidianamente não quer ver?
Sim, com certeza, mas isso deve ser feito com inteligência. Acredito, inclusive, que essa é a função do homem da imagem. Tenho muito respeito por quem continua mostrando guerras e outros conflitos, mas, sem dúvida, a violência não é a única coisa a ser denunciada, a ser exposta, pelo contrário. Existem muitas outras, até mesmo mais interessantes. Penso que um homem da imagem é alguém que tem sempre de se questionar, de estar adiantado em relação ao próprio tempo, à época em que vive. Ele deve estar um passo à frente. Muitas vezes me dizem: “você fica muito tempo conhecendo as pessoas, criando intimidade com elas antes de filmar”. E eu penso: não, não muito. Precisei de um pouco mais de tempo quando trabalhei com os camponeses, pois realmente esse foi o assunto mais complicado de abordar.

Crédito: Raymon Depardon

É necessário criar um vínculo, certo?
Sempre tinha comigo uma máquina fotográfica antiga. Fazia algumas fotos previamente e aí, quando a Claudine (Nougaret), responsável pela captação do som e minha esposa, chegava, os locais já tinham entendimento de que nosso trabalho era fotografar e filmar. Por causa das minhas máquinas antigas, as pessoas deduzem que sou velho e não famoso, pois meu equipamento não é digital (risos). Mas, cometi um erro (risos). Certa vez, fiz uma campanha para o governo sobre acidentes de estrada. As revistas e jornais do interior relataram isso. Aí eles me disseram: “mas você é famoso!” (risos). Buster Keaton costumava dizer que a gente é famoso quando um camponês tibetano sabe soletrar nosso nome. Acho que ele estava um pouco com ciúmes do Charles Chaplin quando falou isso (risos).

 

Como é sua parceria com o Alexander Desplat, hoje amplamente requisitado (e premiado) por Hollywood?
A Claudine viu O Escritor Fantasma (2010), do Roman Polanski, e disse que a música do filme era incrível. Ela deu a ideia de tentarmos falar com o compositor. Pensei: “ele nem vai receber a gente, imagina”. Liguei para o Alexander e marcamos encontro num café. De cara, descobrimos que nossos filhos frequentavam a mesma escola. Ele foi extremamente gentil. Disse que tinha assistido a todos os meus filmes. Fiquei surpreso. Ele falou: “sei que você não tem muito dinheiro”. (risos). Na nossa primeira parceria, acabei usando algumas sobras da trilha de A Árvore da Vida (2011). Alexander disse que poderíamos pegar, sem pagar. Fiz questão de pagar na nossa segunda colaboração (risos). Alexander só trabalha em cima do filme pronto, não quer ver material prévio. Tenho muita sorte de já ter feito dois longas com ele. Alexander é muito rápido. Gravamos num pequeno estúdio, com cerca de 30 músicos. Tenho plena confiança, e ele se dá muito bem com a Claudine. É uma grande figura. Em mais ou menos 15 dias entrega o trabalho pronto, não sei como consegue. Muita gente questiona o fato de eu utilizar música nos meus documentários. Respondo com uma pergunta: “por que não tenho direito à música?” (risos). Voltando a Alexander, tenho a impressão de que ele me conhece até melhor do que eu pensava. Agrada-me seu jeito muito francês. Claudine sempre compra bolos que remetem à sua infância para nossas reuniões, talvez seja essa a receita para conseguir ter ele nos filmes (risos).

 

No seu trabalho, nota-se vontade de registrar, ao mesmo tempo, as tradições e as transformações do mundo. Como o senhor encara esse duplo desejo?
Efetivamente, é bem por aí. Tenho natureza otimista. Mas, por exemplo, essa velha Europa não estava pronta para a globalização. Agora a nação está começando a se conscientizar disso, principalmente de que ela não é dominante. Há todo um mundo em sua volta. Como criador, não quero sempre fazer a mesma coisa. Acabo mostrando coisas que denotam transformações, minhas, mas também de toda a sociedade.

Crédito: Raymon Depardon

E criar nos tempos atuais?
Tenho o cuidado de não ser rápido demais. Sei que quando faço um take de 20 segundos, as pessoas acham muito longo (risos). Isso é terrível, porque 20 segundos é nada. Por exemplo, antes de assistir a A Aventura (1960), do Michelangelo Antonioni, todo mundo me avisava que era um filme tedioso, muito longo, lindo, mas looooongo (risos). Acredito que até o fim da minha vida vou procurar inovar, me questionar e seguir buscando, talvez fazer algo que acabe desdizendo tudo o que fiz até agora. É muito estranho. Várias pessoas confiaram em mim, simplesmente porque confiaram. Tento confiar também nas pessoas.

(Entrevista concedida ao vivo no Rio de Janeiro em janeiro de 2018)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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