Disponível na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em versão online, o suspense Dente por Dente (2020) representa uma aposta ousada no cinema brasileiro. Os diretores Júlio Taubkin e Pedro Arantes investem numa história em moldes hollywoodianos, incluindo cenas de ação, luta e momentos de terror envolvendo efeitos especiais.

No centro da trama está Ademar (Juliano Cazarré), segurança de uma construtora de São Paulo. Diante do sumiço inesperado de seu sócio, começa a investigar por conta própria a máfia imobiliária da cidade, descobrindo segredos que colocam sua vida em risco. Paolla Oliveira, Renata Sorrah e Aderbal Freire Filho completam o elenco. O Papo de Cinema conversou com Cazarré sobre o projeto:

 

 

Como se envolveu com o projeto?
Recebi o roteiro há muito tempo, porque o filme demorou para ser lançado. Assim que li o roteiro, fiquei com muita vontade de contar essa história e fazer um filme de gênero. É raro aparecer um suspense com pitadas de terror no cinema brasileiro. O roteiro é muito bem construído, e brinca com os limites entre o sonho e a realidade. Além disso, traz uma discussão sobre a gentrificação nas cidades grandes, com as pessoas sendo expulsas para a construção de grandes empreendimentos. Por isso, me parecia um projeto bem completo. Em paralelo, essa era a oportunidade de protagonizar um filme, algo que não tive muitas vezes na carreira. Foi um exercício muito gostoso: eu estou em praticamente todas as cenas, o que representava um teste de resistência, e de interpretação dentro de um estilo que eu ainda não tinha feito. O gênero exige reações diferentes, mas que não podem ser exageradas.

 

O filme traz grandes cenas de ação, incluindo lutas. Como lidou com este aspecto?
Tivemos uma preparadora de atores, a Nina Kopko, que trabalhou conosco a jornada do herói, muito importante para os roteiros tradicionais americanos. Ela me ajudou a pensar no intuito exato de cada cena dentro do filme, quando o personagem se apresenta ou se prepara para um desafio, por exemplo. Ela me ajudou a compreender a arquitetura do roteiro e fazer o trajeto do personagem. É muito interessante trabalhar este tipo de cenas. Elas existem raramente no cinema brasileiro, e eu também não tinha tido a oportunidade de fazer isso na carreira. O personagem é chamado para uma missão, começa a resolver, enfrenta dificuldades, reforça a vontade de lutar. Todo mundo está de parabéns, entre a preparação de atores, a direção e o roteiro. Eu gostei muito. Assisti pela primeira vez durante a estreia, e fiquei muito feliz com o resultado.

 

Dente por Dente

 

Não conhecemos muito sobre o passado nem a família do herói. Você chegou a construir estes elementos extrafilme?
A gente criou toda a gênese desse personagem: ele é um cara que nunca teve pai, e foi muito ligado à mãe. Desenhamos tudo isso. Era uma mãe muito firme e honesta, que trabalhava lavando roupa. Um dia ele foi algo errado, foi pego com dinheiro e a mãe se decepcionou, colocou ele para fora de cara. Fiquei pensando por que ele tinha aquele “r” pronunciado, de qual cidade de São Paulo ele vinha. Como a gente não teria a oportunidade de contar tudo isso ao longo da história, tivemos todo esse trabalho de construção antes para garantir que o personagem tivesse camadas.

 

Antes de se envolver no crime, o personagem trabalha como guariteiro. Como se preparou para essa profissão?
Eu tive um contato rápido com a profissão. Conheci uma empresa de segurança de maior porte do que aquela mostrada no filme. Visitei os seguranças. Não tive muito a experiência da guarita, mas isso vem da experiência de vida de chegar num prédio para visitar alguém, encontrar o porteiro com cara de cansado, com sono, depois de ficar no turno da madrugada. A gênese do personagem não está no filme, mas a gente imaginou que o Ademar trabalhou como porteiro no prédio do Teixeira, onde eles se conheceram, junto da esposa interpretada pela Paolla. Assim ele foi chamado para trabalhar na empresa.

 

Paolla Oliveira em Dente por Dente

 

Diria que o filme faz uma crítica à especulação imobiliária e à crise de moradia em São Paulo?
Sim, mas de maneira nada didática. O filme não se torna uma cartilha sobre a situação habitacional em São Paulo. Existe uma crítica clara enquanto pano de fundo, bem delineada. Acabamos descobrindo que a razão de todos aqueles crimes está ligada à ganância de uma grande construtora. Mas esses temas aparecem sem tornar o filme pesado. As escolhas estéticas, de enquadramento e da arquitetura de São Paulo, são muito interessantes: o contraste dos prédios novos e modernos com os antigos, os grandes canteiros de obras, a casa mais simples do Kleber, as pessoas morando de maneira precária numa ocupação… A crítica existe, mas sem dizer ao espectador o que pensar, nem qual conclusão tirar.

 

O título faz alusão ao provérbio, mas os dentes também são literalmente importantes no roteiro. Como vê o papel deste símbolo na história?
O dente é um objeto carregado de teatralidade, assim como o espelho, a adaga, o baralho de cartas, o maço de cigarros. São objetos que já trazem ideias. O dente é algo nojento de segurar se não for o seu próprio dente. Sonhar com dente é um tabu, porque se acredita que vai trazer morte de parente. Gosto muito da escolha dos dentes ao longo do filme todo, e também do título. Enquanto eu trabalhava no projeto, ele se chamava apenas Dentes, mas eu acho Dente por Dente um baita achado. Existe a vingança do olho por olho, dente por dente, que traz a ideia de pagar na mesma moeda. O filme tem isso, com alguém precisando pagar um crime obscuro. A gente junta o símbolo dos dentes com a noção do justiciamento. Os dentes aparecem com uma teatralidade importante no filme.

 

Dente por Dente

 

Trabalharam com referências? O personagem sempre usando uma jaqueta de couro com um animal nas costas remete a Drive (2011), por exemplo.
As principais referências que os diretores me passaram vêm do cinema sul-coreano. O filme aposta muito na mesma estética sombria. Os filmes aos quais eu assisti tinham tanto elementos de terror quanto um pouco de humor, o que era inesperado para mim. As atuações eram um pouco mais afetadas, farsescas, mais desenhadas. A gente decidiu não pegar este traço do humor, porque Dente por Dente é mais realista, com atuações contidas. Mesmo assim, as referências de imagens vêm principalmente do cinema sul-coreano.

 

O filme tem imagens impressionantes, e agora estreia num festival online. Como vê o fato de as pessoas assistirem nos seus computadores e televisores?
É um sinal dos tempos. Esta é uma realidade que se impõe: as pessoas consomem cada vez mais audiovisual até em telas de celular, tablets e computadores. Mas para a gente que trabalha com cinema, a ideia é continuar caprichando, fazendo planos bonitos e imagens bonitas. Tem essa questão: se você coloca o laptop em cima do peito quando está deitado na cama, tem quase a impressão do cinema com a tela perto, o som próximo. É pena que o lançamento online seja devido a uma pandemia. Obviamente, a gente não gostaria de estar vivendo isso. Mas fico feliz que a Mostra de São Paulo tenha um serviço de streaming. Quantas vezes eu lamentei o fato de não poder ver filmes de festivais como Veneza? Pego o caso de um amigo meu, o diretor Gabriel Mascaro. Ele roda o mundo inteiro, nos festivais mais loucos que você pode imaginar. Esse cara tem um vocabulário cinematográfico que, para quem não é rato de festivais como ele, fica difícil adquirir. São filmes raros de encontrar, porque passam em poucos festivais, no circuito de arte, e às vezes nem chegam no Brasil. A possibilidade de ter um streaming de festivais com a janela de alguns dias para assistir a coisas interessantes de diretores do mundo inteiro é um golaço.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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