20190326 leonardo mouramateus papo de cinema

Cearense de nascimento, mas radicado atualmente em Lisboa, capital de Portugal, o cineasta Leonardo Mouramateus está estreando na seara dos longas-metragens com António Um Dois Três (2019). Prontamente, ao atender a nossa ligação para o Papo de Cinema que você confere a seguir, ele disse que não gosta de fechar sentidos. Seu desejo é que o espectador se perca nas três camadas dessa história sobre um jovem lisboeta que tem momentos distintos. De passagem pelo Brasil para fazer a divulgação do filme, Leonardo é o tipo de entrevistado que efetivamente dialoga com o entrevistador, expondo pacientemente seu modus operandi. Conversamos com ele sobre a importância do livro As Noites Brancas, de Fiódor Dostoiévski, do qual pega emprestado determinados elementos, acerca de certa celebração da imaturidade intrínseca à juventude e, também, a respeito da filiação possível com um grande mestre. Confira, sem mais delongas, a nossa entrevista exclusiva com o cineasta Leonardo Mouramateus.

 

Qual o elemento básico que mais te fascinou, de pronto, em As Noites Brancas, romance distinto na obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski?
O livro não entrou no começo, mas claro que já o conhecia. Ele foi dialogando com o filme na medida do avanço do processo de criação. Me encontrava com a equipe, mais ou menos, a cada seis meses. O diálogo entre livro e filme é estabelecido por certa melancolia relacionada à juventude, algo oriundo dos primeiros amores, que reflete sobre a passagem do tempo e a solidão. O protagonista do livro se chama Sonhador, nome lindo que poderia ser atribuído a qualquer herói. Ele caminha pela cidade, meio sonâmbulo, procurando alguma coisa, aceitando a melancolia do amor. O filme não é baseado no livro, pois este apareceu mais tarde como elemento, aliás, no momento certo. Antes era uma espécie de inspiração. Quando surgiu, me ajudou a compreender o processo como um todo, junto da equipe.

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Você sente essa estreia na seara dos longas-metragens como um rito de passagem?
É uma sensação ambígua. No começo, o António Um Dois Três não necessariamente seria um longa-metragem. Eu somente queria filmar a história de um rapaz. Uma das possibilidades era fazer vários curtas sobre o mesmo personagem, uma coisa parecida com o vagabundo, do Charles Chaplin, ou Sr. Hulot, do Jacques Tati, que aparecem em várias locais, sem passado. Algo também meio 007. O importante seria a serialização da coisa, que criaria a dramaturgia externa ao filme. Quando filmamos a primeira parte, percebemos que seria ainda mais legal coloca-la num pacote com outras histórias. O três é esse numero cabalístico, tem relação com a estrutura da narrativa clássica. E nós, ao mesmo tempo atravessamos o classicismo, mas não permanecemos nele. Estamos vendo só um fragmento, algo que me interessa muito. O filme não se limita à sua duração. Provavelmente há Antónios anteriores e posteriores.

 

Em outros filmes seus, como Vando Vulgo Vedita, também há uma espécie de elogio à imaturidade vivaz, não condenada, mas entendida como uma das belezas de ser jovem…
Me interessam muito esses personagens imaturos, aliás, qualquer pessoa que consiga ir além de ser um pacote de traumas e desejos. Não me instigam os personagens construídos como se tivessem características de RPG. Minha vontade é viver junto com as pessoas, com aquilo visto, as paisagens, algo que vai de maneira irresponsável fluindo no filme. É muito maior do que reduzir a vida a uma ação ou a uma reação, do que focar somente em desafios e derrotas. Nada disso me interessa. O António ri desse jeito desbragado e as figuras são meio imaturas porque nelas o que me alimenta é o poder de decisão, mesmo sabendo que não necessariamente serão as melhores escolhas. A paixão consegue fazer com que ele tome caminhos ruins e isso me interessa. Ele tem poder de decisão.

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Em que medida ser um estrangeiro em Portugal foi determinante para criar António Um Dois Três?
A sensação de deslocamento existe desde o começo nos meus curtas. Ir à Portugal não me levou a resolver isso. O filme também expele naturalmente minha relação com Lisboa, e justamente não faço do António um brasileiro na cidade porque quero cruzamento de olhares. O fato de eu ser estrangeiro determinou tudo. Não intento ser português, nem fazer filmes europeus, tampouco um filme estritamente brasileiro. Desejo estabelecer uma espécie de transe, que não cabe em lugares específicos. Ser estrangeiro é algo que não esqueço por um minuto sequer. Em Portugal o António Um Dois Três é recebido como brasileiro; aqui ele é tido basicamente como português (risos).

 

Vamos especular: como você acha que seria esse filme se ambientado em Fortaleza?
Ele jamais poderia se passar em Fortaleza (risos). Mesmo a sensação melancólica que o perpassa não seria a mesma, uma vez sentida em Fortaleza. As relações culturais, com as ruas, o sentimento do filme, tudo seria completamente diferente. E tem outra coisa: o longa não existira sem o Mauro Soares (o protagonista) e ele não é cearense (risos). O corpo dele é que faz o António ser dessa maneira.

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Jean-Claude Bernardet disse que em Cópia Fiel, do Abbas Kiarostami, as regras constantemente eram alteradas, como na vida. Senti isso também no António Um Dois Três
Amo profundamente o trabalho do Kiarostami. Cópia Fiel mexe muito comigo. Sou bastante influenciado por teatro e dança, com os quais tenho ligação desde os 15 anos, antes de ingressar no cinema. Pessoas, lugares, ideias e memórias me influenciam. Nada é novo, tudo é uma reorganização do que a própria vida oferece. Nunca vou fazer um filme à altura das coisas que estão ao meu redor. Preciso estar atento ao tempo real. João Fiadeiro, que interpreta o pai do António, é um dos artistas que mais me influencia. Seu método de composição nasce dentro da linguagem da dança, da performance, mas pode ser trabalhado em vários âmbitos. Algumas noções caras ao método do João, como suficiência, e a ideia de um jogo cujas regras são construídas à medida em que se joga, são influências diretas. Então, me parece correta a sua associação. Eu poderia escrever 90 páginas de roteiro, mas preferi construir o todo com os atores, utilizando as histórias da fotógrafa, do diretor de som e dos demais membros da equipe. Simplesmente faço a curadoria das palavras, do tom e da encenação.

 

(Entrevista concedida por telefone em março de 2019)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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