Valérie Lemercier é um dos maiores nomes do cinema francês. Se muitos dos seus trabalhos mais sérios permanecem inéditos no Brasil ou tiveram lançamentos limitados, é certo que grande parte da audiência nacional deverá lembrar dela por suas participações nas comédias O Pequeno Nicolau (2009) – e na continuação, As Férias do Pequeno Nicolau (2014) – em que aparecia como a mãe do personagem-título, ou no sucesso Asterix e Obélix: A Serviço de sua Majestade (2012), versão live action dos populares quadrinhos sobre os heróis gauleses, no qual interpretava a sugestiva Miss Macintosh! Lemercier, porém, é uma atriz de muitas camadas, dona de nada menos do que oito indicações ao César – o ‘Oscar’ do cinema francês – tendo sido reconhecida em três ocasiões! A última foi pelo projeto que considera o mais especial de toda a sua carreira: Aline: A Voz do Amor, a versão ficcional – e não autorizada – da trajetória de sucesso da cantora Celine Dion, no qual não só empresta seu rosto à protagonista, como também assumiu a direção e o roteiro. “É o papel da minha vida”, afirmou a respeito. E nós conversamos com ela sobre como foi assumir esse desafio, em um bate-papo inédito e exclusivo. Confira!
Ola, Valerie. Prazer falar contigo. Apesar de ser mais conhecida como atriz, você já havia dirigido outros filmes, nos quais também trabalhou no roteiro. O que em Aline: A Voz do Amor a motivou para assumir essas funções?
Olá, é um prazer estar aqui com você. Então, esse é o sexto filme que dirijo. Sabe, fazia algum tempo que não me colocava atrás das câmeras, e amigos chegavam até mim e perguntavam: “você não vai mais dirigir?”. Percebi que havia uma curiosidade por parte deles sobre o que iria fazer a seguir. Agora, fazer Aline: A Voz do Amor, antes de qualquer coisa, foi vivenciar a história dessa mulher. Hoje me considero uma grande fã de Celine Dion, é uma mulher divertida, uma pessoa muito humana, e encontrei da trajetória dela similaridades com a minha própria vida. Também venho de uma fazendo no interior, sou filha de uma família numerosa, não era uma criança bonitinha, dessas de capa de revista e cartão-postal, assim como a Celine também não. Meus pais, assim como os dela, eram apegados à música. E além de tudo, passei a maior parte da minha vida sobre um palco. Claro, diante de audiências menores, mas conheço a sensação. Foi como se colocar diante de um espelho. Além de tudo, entendo essa solidão, o sentimento quando as pessoas que mais amamos se vão, como é estar sozinha diante de todo mundo.
Qual era a sua relação com a Celine Dion antes desse filme?
Confesso que não era uma grande fã, não. Tem uma música que gosto muito, mas para você ter ideia, nem sabia que era dela. Não conhecia o repertório, principalmente as canções em inglês, só fui descobri-las mais tarde. Claro, adoro “Pour que tu m’aimes encore”, que foi escrita e produzida por Jean-Jacques Goldman, provavelmente a melhor canção já feita em língua francesa. Mas desconhecia completamente o início da carreira, de onde tinha vindo, quais eram as músicas em inglês mais importantes. Passei muito tempo lendo a respeito e ouvindo todos os álbuns. Mas, além disso, acho que esse é um filme que fala sobre uma família de Quebec, no Canadá. Tanto é que tem muita música de Quebec, que nem imaginava ter esse origem antes dessa pesquisa.
Ela chegou a assistir ao filme? O que há de diferente entre a vida dela e essa versão ficcional?
Uau, tem muitas diferenças! Acredito que Celine Dion nunca leia nada a seu respeito, não em jornais ou revistas, muito menos na internet. René Angelil, seu falecido marido, era quem fazia isso. Toda a relação entre ela e a imprensa ou mesmo com outros autores era feita por ele, que a protegia o tempo todo. Esse filme, portanto, é mais uma manifestação a seu respeito. Assim, acredito que até esse momento ela não o tenha visto, e acho provável também que nunca o verá. Simplesmente não faz parte do estilo dela se interessar sobre o que escrevem a seu respeito.
Qual foi o maior desafio para você nesse projeto?
Foi tentar se manter, ao menos na maior parte do tempo, junto com a família. Não queria fazer humor, muito menos dar espaço a rumores sobre essa história de amor. Queria que essa ternura que sempre houve entre eles ficasse impressa na tela. Meu esforço foi no sentido de deixar evidente em cena a coragem e comprometimento dela na construção desse relacionamento. Ela realmente precisou sacrificar muitas coisas em nome do casamento, dos filhos, do que, enfim, acreditava. Queria estar junto desse amor e torná-lo perceptível ao espectador.
Houve a intenção, em algum momento, de fazer dessa uma cinebiografia oficial? Você tentou contatá-la para obter sua aprovação?
Não, sob hipótese alguma. Seria fácil assumir apenas um lado, o dela, portanto, e não era algo que buscava. Acredito que, se você quiser criar, o melhor é se afastar do objeto a ser retratado e fechar os olhos. Estava em uma distância interessante, percebe? Estou na França. É mais fácil entender alguém no seu todo quando não se está tão envolvido. Poderia, é claro, me encontrar com Celine durante cinco minutos nos bastidores de um desfile de moda, por exemplo, mas também pensei: “por quê?”. De que isso me adiantaria? Se estava interessada apenas em compor esse retrato, o que poderia me agregar? Nós nem somos parecidas fisicamente. Manter um certo afastamento é sempre mais recomendado durante o processo de criação. Se você estiver muito próximo, será difícil entender o todo.
Algumas decisões imagino que tenham gerado controversa, como a maneira de representar a protagonista na infância. Como essas escolhas foram feitas?
Veja só, quando se tornou conhecida internacionalmente pela primeira vez, Celine era uma mulher linda e esperta. Porém, na França, assim como em Quebec, já fazia sucesso há muito tempo, desde jovem. Era um rosto estranho, ainda em formação. Queria que ficasse evidente na tela essas dificuldades do crescimento, o período conturbado da adolescência. Não queria mandar uma garota desconhecida nessa tarefa, tendo que enfrentar o desconhecido. Por isso preferi que eu mesma fizesse, pois achei importante carregar esse fardo. Por ser um período difícil da vida, queria sentir essas dores. Começamos com uma Celine que tinha apenas 14 anos quando se tornou famosa no Canadá. E, mesmo assim, tinha que se portar como adulta. Quando René a conheceu, afirmou que ficou mais interessado nela do que o contrário, pois era muito séria. Ela chegou a declarar em entrevistas, a respeito dessa fase de sua vida: “eu era como uma pequena mulher, e não uma criança ou adolescente”. Quis interpretá-la desde a infância pois era importante passar por tudo isso. O filme começa quando tinha apenas seis meses e era colocada para dormir em uma gaveta. Era importante estar ao lado dela desde o começo e conhecer suas origens.
Celine Dion é canadense e faz muito sucesso nos Estados Unidos, mas por cantar também em francês, imagino que tenha muitos fãs também na França. Como Aline foi recebido por aí?
Ah, a recepção foi ótima. Tanto pela imprensa, que teceu elogios, como pelo público, que foi em massa aos cinemas. No começo, preciso confessar, alguns manifestaram receio de que talvez se deparassem com algo brega, um tanto kitsch, mas assim que viram o filme, mudaram de ideia. As críticas que recebemos foram muito boas. Quando anunciei que iria comandar esse projeto, muitos reagiram como se fosse uma piada. Então, fui lá e provei que não era. Não queria que fizessem de todos esses esforços um motivo de deboche. Queria falar desse amor, sobre Celine e sobre René, e o quão importante ele foi para sua carreira. Quando penso sobre o filme, agora, muitas vezes me pego atenta mais ao René do que na Celine. Para mim, é um filme sobre esse homem, mais até do que sobre a cantora que é um sucesso no mundo todo. Conheço mulheres reconhecidas por seus talentos que também possuem grandes homens ao lado delas.
Você recebeu o César de Melhor Atriz por esse trabalho, e é o terceiro da sua carreira. O que essa conquista tem de especial em relação às anteriores?
Sim, exatamente, foi a minha terceira vitória no César. O que esse tem de especial? É muito simples, foi o primeiro como protagonista. Os outros dois foram como coadjuvante. Se isso faz diferença? Com certeza. Sem esquecer que esse talvez seja o papel mais importante da minha vida. É, ao menos, como vejo agora. Espero ser lembrada por Aline: A Voz do Amor. É o filme que resume a minha carreira. É a personagem que estará comigo para sempre.
Você conhece o Brasil? Como espera que o público daqui receba Aline: A Voz do Amor?
Estive no Brasil pela primeira vez para o lançamento de Os Visitantes (1993). Faz muito tempo. Era início dos anos 1990, e foi um dos sucessos do início da minha carreira. Estive no Rio de Janeiro naquela ocasião. Me apaixonei pelo país de vocês, tanto que voltei outras vezes, mas só em férias e momentos de descanso. Para aproveitar (risos). Vou lhe contar uma curiosidade: meu professor de dança é brasileiro! Sabe, adoro dançar, por isso, quando decidi aprender, fui atrás de um dos melhores. Enfim, todas as vezes que estive no Brasil foram inesquecíveis. Sempre me senti muito confortável aí. Por isso, estou feliz que todo esse amor que colocamos nesse filme esteja circulando. Sinto algo muito familiar com o público brasileiro, e estou orgulhosa em poder mostrar meu filme a vocês. É um misto de emoções, por duas camadas de entendimento: por ser o meu filme e por estar no Brasil. É muito emocionante.
(Entrevista feita por zoom, entre Brasil e França, em 15 de junho de 2022)
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