Luiz Bolognesi está acostumado com a presença do cinema brasileiro no Festival Internacional de Cinema de Berlim, seja com seus próprios filmes enquanto diretor (o documentário Ex-Pajé, 2018), seja como roteirista dos projetos de outros diretores (caso de Como Nossos Pais, 2017). Em 2021, diante de uma edição reduzida e online da 71ª Berlinale, ele levou o único longa-metragem inteiramente brasileiro ao evento. Trata-se de A Última Floresta, documentário sobre os mitos e a cultura do povo Yanomami.

O projeto impressiona tanto pelo rigor estético, com imagens belíssimas da aldeia isolada em meio à natureza, quanto pelo discurso potente contra as invasões dos garimpeiros e a inação do governo federal diante dos crimes. Assim como em Ex-Pajé, a fronteira entre ficção e documentário é explorada pelo cineasta, que efetua reconstituições de mitos fundamentais a esta comunidade. Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com Bolognesi sobre o projeto:

 

Luiz Bolognesi

 

O roteiro é assinado por você e por Davi Yanomami. Como foi o processo de criação?
Na verdade, todas as coisas que eu levei prontas, como as minhas anotações, foram derrubadas pelo Davi. Ele ouviu com atenção todas as ideias que eu propus, o que incluía um sonho meu. Então ele me disse: “Essas histórias são bonitas, mas não fui eu que sonhei. Esse é um sonho seu, mas você prometeu que a gente faria o sonho Yanomami”. O Davi começou a se comportar como o dono da história, assim como eu tinha convidado. Ele tomou a liberdade de me dizer que não gostou do Ex-Pajé, meu filme anterior, porque o pajé é fraco demais. Para ele, quem tinha poder nesse caso era o pastor evangélico. Ele me disse: “Não quero o meu filme assim. Quero que o xamã seja forte. Não quero mostrar meu povo como vítimas. Temos problemas, mas não somos coitados: o Yanomami é um povo forte, saudável, bonito. Quem está doente e fraco são vocês, que estão comendo o próprio fígado. Vocês destroem as próprias florestas e acabam com a água que têm para beber. São vocês que têm que aprender com a gente”.
Para ele, era fundamental que o filme mostrasse a força do povo Yanomami, e no meio disso, os problemas. Ele queria que os brancos superassem os clichês para conhecerem e aprenderem com os indígenas. “Vocês pararam de ouvir os espíritos da floresta, que os antepassados ouviam, e por isso se perderam. Vocês precisam nos ouvir para se reconectarem com os espíritos da floresta”, ele disse. Convidei o Davi para ser não apenas personagem, mas autor do filme. Ele aceitou e me convidou a passar duas semanas na aldeia, no meio da floresta. É um lugar de dificílimo acesso: não dá para ir de carro, nem de barco, só com um avião pequeno. Ali começamos a pensar as histórias, a trocar ideias. Construímos a narrativa com muito respeito. O Davi trouxe para a mesa os caçadores e os homens mais velhos, que também opinaram. Surgiram então as histórias mágicas, não apenas as experiências do dia a dia. Eles me contaram de Omama e Yoassi, o mito fundador do povo deles.

Era fundamental que o filme mostrasse a força do povo Yanomami.

Percebi que nesta conversa existiam apenas homens, apesar de haver uma líder indígena mulher que me procurava para conversar. Ela me contava histórias, e sugeri ao Davi filmar as histórias da Joana. Ele me perguntou o porquê, e eu expliquei que o mundo estava mudando, e as mulheres tinham histórias para contar que os homens não conheciam. Além disso, o mundo lá fora ficaria decepcionado se a gente retratasse apenas os homens Yanomami, mas não as mulheres. Ele pensou um pouco, e aceitou contar as histórias dela também. Houve esta dupla transgressão: ele avançava no meu potencial narrativo, enquanto eu trazia algumas ideias para ele. Foi um processo rico, de respeito mútuo. O Davi tem muita abertura e curiosidade, e procurei praticar esta atitude indígena de escuta aberta. Não queria chegar para eles e dizer: “Você fica aqui, você caminha daqui para lá, você faz tal ação”. O filme não foi feito assim, obviamente.

 

A Última Floresta

 

Para além da repercussão cultural, os Yanomami tinham expectativas políticas quanto ao filme? Eles esperavam que o projeto exercesse pressão sobre o governo?
Tem dois níveis de expectativa muito diferentes: um vem dos Yanomami que moram na aldeia, não falam português e não vão para a cidade, e o outro vem do Davi, que se conecta com a cidade, tem uma narrativa política e dá palestras em Harvard, Paris e Londres. Os Yanomami da aldeia tinham curiosidade porque nunca viram um filme antes. Eles têm pequenas telas de celular que exibem trechos de filmes, clipes e músicas, mas eles nunca assistiram a um filme inteiro. A expectativa deles foi rapidamente preenchida quando eu filmei as primeiras cenas e mostrei para eles. Os Yanomami se encantaram ao se verem na tela, lindos como eles são. Eles se arrumavam e se pintavam para as filmagens: eu não levei nenhum diretor de arte, mas tive vários diretores de arte no local.
Como a fotografia é bonita e a gente trazia um olhar poético para a realidade, eles se encantaram de imediato e se abriram à proposta. Às vezes eu dizia que não mostraria a filmagem para eles em determinados dias, apenas depois, e eles aceitavam tranquilamente. Eu não queria que eles perdessem a concentração do momento. Já o Davi tinha uma expectativa dupla: primeiro, que o filme levasse aos jovens Yanomami informações sobre os xamãs e sobre eles mesmos. Assim eles entenderiam por que não devem sair da aldeia, e por que precisam enfrentar o garimpo.

Existem entre 15 mil e 20 mil garimpeiros que invadiram as terras deles,
destruíram a mata e contaminaram as águas com mercúrio.

Primeiro, ele fez o filme para a população Yanomami, que é muito grande. Segundo, ele queria informar os brancos sobre os problemas que eles estão vivendo, quem são e como eles vivem de verdade. Assim, pretendia ganhar mais voz na luta contra a invasão de garimpeiros. Esse é um problema muito grave neste momento: existem entre 15 mil e 20 mil garimpeiros que invadiram as terras deles, destruíram a mata e contaminaram as águas com mercúrio. As forças armadas costumavam fazer a desocupação, porque isso consta na lei: as invasões são ilegais, e a terra Yanomami é constituída legalmente.
Pela constituição, o homem branco não pode entrar ali sem autorização deles. Por isso os Yanomami estão pedindo para retirarem os garimpeiros. No passado, o exército brasileiro fez isso várias vezes, com muita classe, sem matar ninguém. Eles destruíam pistas de avião, cumprindo sua tarefa patriótica de preservar nossos recursos hídricos e nossa última floresta. Mas desde 2019, estes 15, 20 mil garimpeiros invadiram o local, e o processo de retirá-los não ocorre. Para o Davi, é importante que o filme leve essa mensagem para ser repercutida pela mídia, pela opinião pública, exercendo pressão no Congresso. O Davi sempre lembra que não está pedindo nenhum favor: ele quer que o branco cumpra a lei que ele mesmo criou.

 

A Última Floresta

 

Como enxerga o papel da ficção e da encenação dentro do documentário?
Eu escrevo muitos roteiros de ficção para outros diretores, e escrevi Uma História de Amor e Fúria (2013) para mim. Gosto muito da ficção, embora tenha uma predileção pelo documentário. Essas fronteiras se misturam: quando faço ficção, estou buscando a verdade do documentário, e quando faço documentário, busco a ilusão da ficção. Não tenho dúvida de que toda construção de documentário é uma narrativa com os mesmos dispositivos e estratégias de um filme de ficção. Em Ex-Pajé, isso ocorreu naturalmente, não foi um conceito que eu queria adotar. Não imaginava que eu teria cenas encenadas, mas uma semana antes, a minha protagonista foi picada por uma jararaca, e tudo se passou como está no filme. Pensei: “Perdi uma história incrível por conta de uma semana”.
Naquele caso, os filhos também recorreram ao pajé, ao invés do pastor. Depois reconsiderei: “Eles estão aqui, e a câmera é uma brincadeira. Vamos refazer essa história”. Então refizemos essa história, e gostei bastante deste método de trabalho. Quando cheguei nos Yanomami, eles também contaram histórias do passado recente, além dos mitos. Para não deixar isso apenas no plano oral, sugeri que a gente revivesse essas histórias. Propus para eles que Omama e Yoassi estivessem vivos, andando pela floresta. A única regra era: “Não olhe para a câmera”! O resto estava permitido. Ficção e documentário acabaram sendo uma coisa só. Neste processo, eu não escondia que não estava no controle. Assumia que às vezes não sabia o que fazer, não achava bom e precisava da opinião deles e do fotógrafo para continuar. Essa tentativa de não agir como um diretor que controla tudo vem de um aprendizado deles: o filme é um jogo com a alteridade. Isso me permitia ganhar confiança nessas encenações, porque eles eram autores e sujeitos, e se apropriavam da história.

Sugeri filmar com eles nus, como os velhos faziam.
Mas os Yanomami recusaram, porque não se vestem mais assim.

Toda vez que eu os colocava numa posição objetificada, do tipo “Faça isso”, “Olhe para lá”, ficava ruim. Aprendemos que o caminho não era esse. A gente precisava vivenciar situações e correr atrás delas. O jogo funcionou. Quando encenamos coisas que aconteceram, ou os mitos que, para eles, são realidades contemporâneas, isso era tão documental do que qualquer outro dispositivo que me permitisse flagrá-los. Se eu estou flagrando um Yanomami caçando, também estou flagrando um Yanomami representando Omama e Yoassi. Essa metalinguagem trouxe muito aprendizado. Por exemplo, quando filmamos este mito, perguntei como seria isso. Eles me disseram: “Omama tem que estar enfeitado, com suas pinturas e suas penas”. Fizemos isso. Então eles chegaram de shortinho e chinelo. Eu estranhei, porque essa era uma história milenar.
Sugeri filmar com eles nus, como os velhos faziam. Mas os Yanomami recusaram, porque não se vestem mais assim, e não se sentem confortáveis. Eu retruquei: “Mas Omama e Yoassi não usavam short e chinelo na época deles”, e ouvi como resposta: “Quem disse? O chinelo é melhor para andar na mata, cansa menos o pé. Talvez Omama tivesse algum tipo de chinelo, eu não sei. A gente quer fazer de chinelo e short”. A minha equipe estranhou isso, mas era como eles queriam. Eu não pretendia forçar os Yanomami a ficarem desconfortáveis. Quando mostrei o resultado às primeiras pessoas, perguntei se o short e o chinelo incomodavam. Escutei como resposta que não, porque isso é autêntico. As pessoas não se sentiram enganadas por uma produção tentando se passar por um projeto hollywoodiano. Entenderam que isso fazia parte do processo.

 

Luiz Bolognesi. Foto: Carolina Fernandes / Estadão

 

No caso dos mitos, são evidentes o controle e a encenação. Mas nas cenas do dia a dia, com as mulheres cozinhando e cuidando das crianças, fica difícil separar o espontâneo do encenado, até pela qualidade da fotografia.
Isso está no âmago do meu trabalho: a disponibilidade, o não controle na dramaturgia, que eu aprendo com os indígenas. Eles não acreditam na possibilidade de controlar o futuro, acham que isso gasta energia e só traz stress e ansiedade. Mas este é o segundo filme em que convido um grande diretor de fotografia, meu parceiro Pedro Márquez, um fotógrafo de ficção. É um espanhol muito sensível, que filmou Como Nossos Pais da Laís, e também o filme inédito dela, A Viagem de Pedro. Ele já fez séries da HBO, séries japonesas, e se tornou meu parceiro nos documentários. Ele traz este conhecimento sobre como tornar a fotografia poética e valorizar a poesia daquele momento. Qual é a melhor luz para filmar, o melhor enquadramento? Como aproveitar o que está em volta?

Não queríamos construir uma falsa beleza.
Não tinha grua, nenhum equipamento do tipo.

Não usamos nenhuma luz, nenhuma lâmpada, nenhum LED. As cenas noturnas com fogo foram feitas com câmera de alta exposição. Levamos uma câmera cujo corpo filmou Guerra nas Estrelas – não o jogo de lentes, que era um bilhão de vezes mais complexo do que o nosso, mas o corpo era o mesmo. Eu estava acompanhado de um fotógrafo e poeta de primeira linha, muito respeitoso com os índios. Então os Yanomami gostavam dele, autorizavam que ele estivesse ali no meio com a câmera. O Pedro se tornou quase um xamã a mais, dançando. A gente buscava combinar a naturalidade, a abertura ao porvir com o rigor estético sem falsa naturalidade. Não queríamos construir uma falsa beleza. Não tinha grua, nenhum equipamento do tipo. A gente captava a beleza do lugar, e escolhia filmar nas horas de luz mais bonita. Recusamos a luz dura, que não valorizava a beleza da cena. É um ato de buscar a poesia da cena em direção a essa dramaturgia sem muito controle.

 

A Última Floresta

 

Como vê a divisão de gêneros entre os Yanomami, em comparação com a nossa? Um dos mitos citados no filme concebe a procriação entre dois homens, por exemplo.
Devo dizer que não sou um profundo conhecedor dessa relação. Muito disso era segredo para mim. Eles não tinham relações na minha frente, embora eu escutasse à noite alguém namorando. No dia seguinte, percebia que estes namoros eram encarados com humor, sem o peso da moral cristã. Nos Paiter Suruí, esse peso existia, mas nos Yanomami, não. Para eles, a sexualidade me pareceu mais livre e fluida do que a nossa. É algo muito lúdico, que acontece em volta da aldeia, ou dentro dela, à noite. Eles me contavam que havia relacionamentos extraconjugais. Não era algo muito grave, mas também não era algo para se ficar falando. Eles riam disso, mas não mencionavam o tempo todo. Cada caçador pode ter até quatro esposas, se ele conseguir cuidar dela, dos filhos e dos parentes delas.
Ao mesmo tempo, estas esposas têm certa liberdade, inclusive sexual, em comparação com o nosso dia a dia. No entanto, sinto que existe ali uma opressão de gênero. Em todos os lugares onde estive na minha vida, vi a opressão de gênero, que fosse em Paris, numa aldeia Krahô, em Xangai ou numa comunidade naturalista no interior da Bahia. A opressão de gênero parece ser um traço da cultura humana, que passa a ser muito questionada, inclusive dentro dos Yanomami.

A opressão de gênero parece um traço da cultura humana,
que passa a ser muito questionada, inclusive dentro dos Yanomami.

A Joana é uma líder feminina que está abrindo uma ONG para as mulheres venderem cestos de palha e terem recursos sem depender dos maridos. Isso é altamente transgressor, modificando e atualizando as relações de gênero, com apoio das antropólogas. O Davi está se abrindo para isso, apesar de haver alguma resistência. Toda vez que o gênero masculino alfa, branco e cis se vê perdendo poder, ele reage para não perder privilégios. Senti que entre os Yanomami havia uma disputa clara, mas em momento fértil de escuta. As mulheres tinham voz e atitudes voltadas à busca de autonomia.
Sobre relações homossexuais e questões de identidade de gênero, notei alguns homens agindo como as  mulheres e sendo aceitos como tais, mas não entrei nisso, porque é algo que requer muita intimidade. Como isso não veio naturalmente até mim, eu me mantive respeitoso em relação a esses temas. Mas notei um lugar social para a transgeneridade, desde que a Yanomami assuma uma posição de trabalho na sociedade. Ou seja, se a índia trans não pretende caçar e cuidar da comida, ela precisa se responsabilizar pelas crianças. Notei índias trans com namorados. Havia uma flexibilidade maior em comparação com a moral cristã à qual estamos submetidos.

 

A Última Floresta

 

Como enxerga a participação brasileira em Berlim esse ano? 
Fiquei muito feliz pelo convite do meu documentário, mas fiquei triste pelo cinema brasileiro. É legal ter um filme lá, e esse ano o festival está bem menor. A participação foi reduzida para todos os países: os Estados Unidos, por exemplo, não tiveram nenhum filme na competição, e a França reduziu bastante. Ao invés de 120 filmes no total, foram cerca de 80 títulos. Isso explica uma parte. Eu fui a Berlim com Como Nossos Pais, Ex-Pajé e com outros brasileiros, em várias mostras. Muitos filmes brasileiros foram vistos, comprados e distribuídos. Obviamente, sentimos esta rarefação, embora a Argentina também tenha perdido bastante: o cinema sul-americano ficou bastante sub-representado em geral.

Tudo o que faz pensar, seja a ciência ou a cultura,
é visto por este governo como indesejável.

Mas o cinema brasileiro foi afetado por duas causas: uma delas foi a pandemia, que paralisou as produções, e a outra foi a política do atual governo contra a cultura. Existe uma ideia de que a cultura faz pensar, então estes governantes preferem que as pessoas ajam como gado, sendo tocadas de um lado para outro sem questionamento. Tudo o que faz pensar, seja a ciência ou a cultura, é visto por este governo como indesejável. Os investimentos foram paralisados, não tivemos novos editais nem concursos públicos. O dinheiro ficou parado, e tanto a cultura quanto a economia sentiram esta perda, porque a economia do audiovisual é importante para o PIB. Foi um tiro no pé dado por radicais de extrema-direita. Eles passarão. Direita e esquerda são bem-vindas quando respeitam as instituições. Mas todo extremismo, seja de esquerda ou de direita, é nocivo para o tecido social quando não respeita as instituições.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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