A chamada primeira onda do feminismo teve início no século XIX, apesar de alguns desavisados e/ou distraídos alegarem que a luta por direitos iguais entre homens e mulheres seja novidade. Isso, talvez, porque nunca se falou tanto em feminismo como nos últimos anos e, ao mesmo tempo, nunca se temeu tanto a sua consolidação. No cinema, o ritmo é ainda mais intenso, já que atrizes populares como Meryl Streep e diretoras como Ava DuVernay e Kathryn Bigelow não economizam suas vozes para reivindicar maior presença e valorização das mulheres na Sétima Arte. Elas podem se sentir um pouco solitárias em suas batalhas, mas, se vale um conselho, todas deveriam se lembrar de Alice Guy-Blaché nos momentos de dificuldade. Se o prezado leitor cogitou ir ao Google para saber quem é a moça citada, não se dê ao trabalho. O Papo Delas explica. A francesa Alice Guy-Blaché foi a primeira cineasta do mundo. Os livros ensinam que Thomas Edison e os irmãos Lumiére registraram as inaugurais imagens em movimento. Eles não estão equivocados. Porém, Alice foi a pioneira no uso de uma câmera como meio de contar histórias. Os que pensaram em Georges Méliès estão perdoados, já que ele ficou com a fama de ser o primeiro diretor de cinema narrativo, com suas produções de ficção científica e fantasia. Só que, enquanto Méliès sonhava com mundos mágicos e truques, Alice já comandava um set. E mais: fazendo o feminismo na tela grande.

Mary Pickford, outra das mulheres pioneiras

Um de seus primeiros trabalhos é o curta-metragem Les Résultats du féminisme, que data de 1906. A trama se passa numa realidade onde aos homens são reservados os afazeres domésticos e as ideias românticas dos relacionamentos, enquanto as mulheres é que passam horas nos bares e cafés após a labuta. Tem mais. No romance mostrado no filme, quem toma a iniciativa é a “mocinha”. Já seria ousadia suficiente para aquele tempo, mas Alice ainda abriu portas em seus mais de mil filmes. Sim, mais de mil, já que, além de habilidosa, a garota nascida em Saint-Mandé produzia rápido, com poucos intervalos. Elenco interracial, utilização de efeitos especiais, cor e som sincronizado com as imagens são outros elementos de seu currículo. Um ano após lançar Les Résultats du féminisme, ela e o marido trocam de país. Juntos, montam o Solax Company nos Estados Unidos. Dona de estúdio e produzindo suas próprias histórias. O sonho de muitas cineastas em 2017 era a rotina de Alice em 1907.

Inovadora e criativa. Por que, então, Alice Guy-Blaché não está nos livros que contam a história do cinema, nem tem sua obra estudada por pesquisadores? A resposta é curta e triste: Alice era mulher. É sabido que em áreas como ciência e tecnologia parece haver aversão a dar crédito para mulheres. Quando isso acontece, vira manchete. Por isso crescemos com a ideia de que certos lugares e saberes não são para as meninas. Quantos talentos se renderam ao medo ou mesmo ao preconceito, acabando afastados de suas verdadeiras vocações? É algo que não se pode medir. E as corajosas que passaram por cima de todo o estigma, sendo interrompidas ou nem creditadas? Por maiores que sejam nossas conquistas, elas ainda incomodam alguns homens insistentes na ideia de que lugar de mulher é na vice-liderança.

Lois Weber, uma das “herdeiras” de Alice

O documentário E a Mulher Criou Hollywood (2016), dirigido por Clara e Julia Kuperberg e exibido no Festival do Rio de 2016, revela não apenas a carreira de Alice Guy-Blaché como também as de outras mulheres que comandavam praticamente todos os departamentos dos estúdios de cinema quando as imagens em movimento não eram lucrativas e valorizadas como arte. Uma época que chegou ao fim assim que fazer filmes passou a trazer dinheiro e status. Os homens entram em cena. Afinal, coisas grandes são masculinas, não é? Piadas à parte, E a Mulher Criou Hollywood é revelador, servindo como mola propulsora para toda e qualquer mulher que queira seguir ou iniciar uma carreira no cinema, seja realizando ou pesquisando. Foi a partir do longa que muitas arregaçaram as mangas. O resultado são vários coletivos surgindo para mostrar a força feminina na Sétima Arte, entre ele o Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema, do qual as responsáveis por esta coluna (Bianca Zasso e Marina Paulista) são integrantes. Resta-nos sonhar com o dia em que os livros serão reescritos e Alice Guy-Blaché se tornará um nome comum entre os cinéfilos e estudantes de cinema. Eles podem estar mais perto do que se imagina. E, ao que tudo indica, serão escritos, mesmo, por mãos femininas.

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é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands.
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