Colocar pessoas em “caixinhas”, como se as mesmas pudessem ser catalogadas e organizadas numa prateleira, é mania de muitos por aí. Basta um pouco de observação e sensibilidade para descobrir que não se deve colar rótulos em humanos. Mães não são todas iguais, mulheres menos ainda, e adolescentes…bom, estes merecem texto exclusivo. E aqui está ele. Nos últimos anos, a fase mais complexa e marcante das nossas vidas se fez presente no cinema brasileiro, e os dois exemplares mais bem acabados nesse sentido foram dirigidos por mulheres.

A gaúcha Ana Luiza Azevedo, depois de vários trabalhos como roteirista e ótimas direções de curtas e documentários, se aventurou em longas-metragens de ficção com Antes que o Mundo Acabe (2009), um conto sobre “adolescer” no interior do Rio Grande do Sul, dotado de humanidade incrível. Baseado no livro homônimo de Marcelo Carneiro da Cunha, o filme acompanha Daniel (Pedro Tergolina), guri de 15 anos que mora com a irmã mais nova, Maria Clara (Caroline Guedes), a mãe, Eliane (Janaína Kremer Motta), e o padrasto, Antônio (Murilo Grossi). O conflito da trama circula por uma paixão semi-correspondida e pelo recebimento de uma carta de seu pai biológico, fotógrafo que mora na Tailândia e há tempos não dava sinal de vida. Mas isso é o que se pode colocar na sinopse, pois Antes que o Mundo Acabe vai muito além.

Para quem (como esta que vos escreve) cresceu num minúsculo município gaúcho, há um sabor especial em escutar o próprio sotaque, as gírias que fizeram parte do cotidiano e até situações que, num grande centro, seriam impossíveis de acontecer, como o primeiro porre de Daniel, que culmina numa farra na torre da igreja, ou os passeios de Fusca (ou “Fuca”, como manda a tradição) pela madrugada entediante. Claro que os dramas variam pouco, afinal crescer dói, abre feridas e infesta a mente de perguntas, seja em Santa Maria ou em São Paulo. Mas, Ana Luiza Azevedo optou por um cenário próximo à sua realidade para permitir maior identificação ao espectador que muitas vezes é obrigado a se enxergar em alguém que chama gurias de garotas. Parece apenas um detalhe linguístico, mas há valor nisso, pois faz parte da construção da nossa identidade, nos aproxima. Também pode causar bullying, mas a maturidade mostra que vale à pena apanhar na saída. Só quem passou por isso é capaz de levantar e seguir em frente. Na porta da escola e no resto da vida.

Laís Bodanzky gosta do inesperado. Bicho de Sete Cabeças (2001) já havia sido prova disso ao mostrar um jovem internado num sanatório pelo pai, após este encontrar baseado em sua mochila. Em As Melhores Coisas do Mundo (2010), Laís apresenta o protagonista Mano (Francisco Miguez) como um adolescente comum. Todavia, entre seus dilemas um se destaca: o pai assume homossexualidade e sai de casa para morar com o namorado. O que era um garoto de mente aberta e sem preconceitos torna-se um filho sem papas na língua para julgar as decisões do pai. E é nesse mar de conflitos que Mano vai crescendo e descobrindo que a vida não é como nos filmes, pelo menos não os que seus amigos assistem, mais interessados na pipoca que nos diálogos. A opção por uma trilha sonora composta de canções que marcaram gerações bem anteriores a de Mano (aparentemente são da geração da própria diretora) parece um recado extra de que ainda somos os mesmos e as canções, por mais que tenham décadas, falam das mesmas coisas. As Melhores Coisas do Mundo não é um filme escapista, tanto que as tecnologias que dominam os dias dos que estão com os hormônios em polvorosa estão presentes. Mas, trocas de mensagens instantâneas e vídeos no YouTube podem se tornar passado logo menos. Amor, sexo e família é eterno presente e são os temperos principais do cinema.

Ana Luiza Azevedo e Laís Bodanzky sabem dar ritmo e poesia a uma cena. A realidade de seus meninos em crescimento traz muito dos mundos que elas encontraram ao dar os primeiros passos na vida. Poderiam ter optado por personagens femininas? Sim, poderiam. Mas mulheres não sabem falar apenas de mulheres. E meninos, por mais que queiram provar o contrário, sentem a adolescência tanto quanto as meninas. Suas dúvidas talvez sejam ainda maiores, já que a sociedade machista insiste que homens devem possuir todas as respostas. O tal olhar feminino do qual tantos falam e pedem explicações, no fundo, não existe para elas e nem para alguma mulher que trabalha atrás das câmeras. Nosso olhar é humano, antes de tudo.

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é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands.
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