Crítica
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Sinopse
Enquanto a boate Trans World é inaugurada, uma série de assassinatos de pessoas transexuais tem início em São Paulo. Ao mesmo tempo em que o mistério vai se desenrolando, um grupo de terapia LGBTQI passa a ser liderado pela psicóloga lésbica Hanna.
Crítica
Um dos tantos núcleos que disputam por atenção na série Toda Forma de Amor é formado por uma psicóloga e quatro pacientes que estão participando de uma terapia em grupo. Cada um deles está ali para representar as tais “todas formas de amor” apontadas no título. Mas, na verdade, servem mesmo é como estereótipos para expressar as diferentes orientações sexuais. Senão, vejamos. Hanna (Guta Ruiz, de Berenice Procura, 2017), a coordenadora do encontro, é a lésbica masculinizada. Milinho (Daniel Infantini, de Carcereiros, 2017) é a bicha má. Paulo (Eucir de Souza) é o homem que gosta de se vestir de mulher (o que não implica, necessariamente, em homossexualidade). Bianca (Wallace Ruy, de Me Chama de Bruna, 2017-2018) é a travesti. E Marcela (Gabrielle Joie, de Sob Pressão, 2018, a melhor do elenco) é a transexual. Como se percebe, cada uma dessas figuras representa uma identidade específica. É justamente esse cuidado matemático – e, por isso mesmo, artificial – que termina por soterrar qualquer uma das boas intenções que o programa talvez pudesse ter nutrido.
Toda Forma de Amor começa com o assassinato de uma travesti. Logo uma segunda também é morta de forma violenta, e um padrão é descoberto: são sempre garotas de aparência andrógina, que faziam programas sexuais e todas muito novas. E o pior: os corpos são encontrados com o órgão reprodutor masculino removido. Numa das primeiras cenas do episódio de estreia (são apenas cinco, felizmente), o ativista político e militante LGBT Claudio Marcondes (Otávio Martins, de Psi, 2014-2015) está dando uma coletiva. Entre suas falas, acusa a polícia de não dedicar esforços na solução dos casos e se compromete em acompanhar de perto as investigações. Tudo leva a crer, portanto, que será sobre isso a série. Nem tanto ao céu, muito menos ao inferno. O programa criado por Marcelo Pedreira (roteirista de Incuráveis, 2005) e com direção geral de Bruno Barreto não chega a ter um foco único. É como se quisessem fazer um seriado aos moldes norte-americanos, sem se desprender das convenções há muito empregadas nas telenovelas brasileiras. Ou seja, é sobre isso, também. E sobre mais um monte de outras coisas, nem todas com espaço suficiente para serem desenvolvidas a contento.
Afinal, nem Marcondes, muito menos qualquer dos personagens da sessão terapêutica descrita acima, são os protagonistas da Toda Forma de Amor. Ainda que a trama tenha um formato coral, com diversos núcleos narrativos se desenvolvendo em paralelo, há uma figura que acaba sendo central, justamente por transitar em (quase) todas essas frentes: Daniel (Romulo Arantes Neto, eficiente em bancar o galã, mas incapaz de ir além quando lhe é exigido qualquer outro tipo de emoção), o playboy filho de um pastor evangélico (Juan Alba, tão canastrão quanto o personagem exige) que acaba dono de um inferninho no centro de São Paulo que tem como público-alvo justamente as travestis da cidade. Ainda que esse seja o objetivo da TransWorld, o lugar acaba funcionando como o espaço onde todos se encontram – seja LGBT ou não. E como este mesmo é um grupo cada vez mais amplo e diversificado, reunir todos sobre um único guarda-chuva só reforça a ideia ultrapassada na qual o enredo busca basear cada uma das suas investidas.
Daniel é sócio de Milinho, que por sua vez é noivo de Marcondes, que decide se candidatar nas próximas eleições como deputado federal – exatamente as mesmas intenções do pai do rapaz. Assim, se os dois se tornam inimigos públicos – um é o liberal defensor das minorias, o outro é o conservador que defende a moral e os bons costumes familiares – acaba sendo natural vê-los em extremos. Causa estranheza, no entanto, a demora de Daniel em se decidir por qual lado se posicionar: se ao lado daquele que lhe sustenta, mas também o oprime e o humilha constantemente, sem sequer se importar com quem ele é ou faz (desde que, é claro, tais ações não prejudiquem sua imagem), ou juntos aos que convive diariamente e com quem forma, de fato, uma nova ‘família’. Indo de um lado ao outro sem muita habilidade – as sequências no ambiente paterno são particularmente deslocadas – sua posição se complica ainda mais quando começa a se interessar pela nova DJ da boate: Marcela, que ele nem chega a desconfiar que se trata uma moça transexual.
O objetivo dela é fazer uma cirurgia de redesignação de gênero. Isso abre outras portas – como a reação dos pais dela diante da novidade, por exemplo – mas além de uma conversa um pouco mais detalhada com a mãe, de tom assumidamente didático, e um almoço ao lado do pai no qual esse mal chega a lhe dirigir a palavra, este e outros temas de mesmo potencial vão sendo apenas tangenciados pelo programa, sem nunca receber o devido aprofundamento que seria necessário. Marcela quer mudar de sexo, e no processo larga o namorado – que não vê mais nela o rapaz por quem se apaixonou – apenas para no capítulo seguinte afirmar que vai deixar tudo como está e que “essa nunca foi mesmo a sua vontade”. Oi? Então, o que ela buscava? Essa inconsistência nas personalidades dos personagens principais está por todos os lados. É claro que mudar de ideia é algo natural do ser humano. Mas seria assim um processo tão banal? Ao menos é o que Toda Forma de Amor parece entender como possível.
Sem falar nas justificativas equivocadas oferecidas a cada um dos dramas explorados. A mulher que a cada noite tem uma nova conquista na cama e evita relacionamentos por nunca ter tido uma figura paterna próxima, o cross dresser que não se assume para a esposa ‘porque se sente feia’, ou ainda a jornalista que não consegue evitar os desejos lésbicos (apenas para descartá-los segundos depois) e o marido dela que só se excita quando pratica sexo anal com a mulher – e por isso, pela lógica dos realizadores, ele só pode gostar de transar com travestis. Como se vê, há muita coisa equivocada em Toda Forma de Amor. Algumas são banais, quase ingênuas. Outras tantas, no entanto, chegam mesmo a ser perigosas, pelas informações distorcidas que emitem e pelas ideias mal concebidas nas quais se debruçam. Bruno Barreto já foi um dos grandes cineastas do Brasil, mas aqui deixa claro estar precisando urgente de uma reciclagem – de vida, de conceitos, de história. E enquanto não toma essa atitude tão humilde quanto sábia, o melhor seria suspender qualquer possibilidade de uma segunda temporada para uma série que até pode ser fruto de uma boa vontade, mas se mostra problemática em todos os seus momentos, sem um único fôlego que possa ser salvo do meio desse imbróglio que, por vezes, beira o irresponsável.
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