Crítica
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Crítica
Como qualquer entidade narcisista, Hollywood adora que falem dela. Durante a Era de Ouro, a imagem (auto)projetada pela Meca do Cinema norte-americano era a de um firmamento onde moravam astros e estrelas, a fábrica de produzir histórias maiores que a vida. De vez em quando surgia alguém para mostrar o lugar como um antro de inveja, disputas ferozes e demonstrações de indignidade humana, vide os maiúsculos Crepúsculo dos Deuses (1950) e Assim Estava Escrito (1952). Com o tempo, Hollywood foi sendo ainda mais convidativa a histórias que a enxerguem como um lugar tóxico. E isso ajuda a manter uma ideia de perigo e fascinação. No fim das contas, o importante é preservar essa aura mítica, distante dos meros mortais. De preferência, por meio de uma linguagem que se afaste alguns passos da realidade e/ou que a encare com certa dose de ironia, como fazem as obras-primas Cidade dos Sonhos (2001) e O Jogador (1991). Filmes como A Assistente (2019), drama cru e menos simbólico sobre esse universo, acaba condenado a um ostracismo que não reconhece as suas qualidades. Tendo isso em vista, Swimming with Sharks tinha tudo para ser um grande sucesso, bem aceito enquanto crítica aos mecanismos hollywoodianos, especialmente, por sua atitude camp, ou seja, exagerada, cheia de estereótipos e arquétipos com pouca profundidade emocional e ênfase básica nos aspectos sensacionalistas.
Contando com seis episódios de cerca de 20 minutos cada (o que é muito pouco, convenhamos) Swimming with Sharks tem como protagonista uma figura frequente dessa abordagem cínica de Hollywood por ela mesma: a menina ambiciosa que aparentemente pretende tomar o lugar de uma veterana, mesmo que às custas de mortes, mentiras, cadáveres e outros produtos de sua avidez desenfreada. Claro que ela remete imediatamente a Eve Harrington, paradigma desse tipo de ascensão selvagem no disputado mundo do entretenimento desde que surgiu em A Malvada (1950). No entanto, Lou (Kiernan Shipka) é rapidamente desvinculada em alguns pontos da personagem vivida por Anne Baxter no clássico de Joseph L. Mankiewicz. A começar pela intenção principal. Ela não parece disposta a galgar os perigosos degraus do mercado cinematográfico para destronar a grande executiva a quem passa a servir, pois sua obsessão logo é tratada como algo patológico que tem pouco a ver com a carreira. Flashes anunciam que Lou não é exatamente quem anuncia ser quando chega ao estúdio comandado com mão de ferro por Joyce (Diane Kruger). Assim, o espectador tem mais informações e indícios a respeito da verdade do que os ignorantes que cercam essa protagonista determinada a eliminar quem permanecer entre ela e seu objetivo, o de ser essencial à executiva que a inspirou no passado.
Todos os personagens de Swimming with Sharks são emocionalmente rasos e tem psicologias simples, sendo derivações de arquétipos cristalizados no imaginário público depois de diversas produções criticando Hollywood e suas engrenagens viciadas. Joyce é a CEO do tipo que faz exigências extravagantes e humilha assistentes para satisfazer seu cachorro, colocando todos em estado de alerta simplesmente por entrar na sala. Sua leitura como vítima do proprietário do estúdio – vivido de modo adequadamente canastrão por Donald Sutherland –, as sinalizações de que ela serve à operacionalidade do machismo, a vontade desesperada de ser mãe e como isso a vulnerabiliza, ou seja, essas questões de ordem pessoal/estrutural são meras formalidades para construí-la como o alvo da novata. Por sua vez, Lou tem um comportamento passivo-agressivo facilmente identificável e que a situa como alguém difícil de ser combatida. Os breves flashbacks definem a importância do cinema à sua vida e revelam traumas que provavelmente desencadearam sua derrocada mental. Essas noções estão sempre dentro de uma lógica ligeira e sem compromisso com garantia de nuances, contradições ou ainda de ambivalências. Aliás, falando em celeridade, as coisas acontecem muito rápido nessa primeira temporada. A trama avança fazendo uso das elipses que suprimem instantes intermediários e imprimem essa pressa.
Verdade seja dita, não faria tanta diferença se a série fosse ambientada no alto escalão de qualquer outra instância do mundo corporativo. Pouco em c é inerente aos bastidores do universo cinematográfico. Joyce poderia ser facilmente deslocada para outro império capitalista no qual responde a um macho escroto e daria no mesmo. Nem mesmo as especificidades da Sétima Arte, como as negociações envolvendo a adaptação de um livro de sucesso, dependem do cinema para existir. Aliás, essa garantia dos direitos como estratégia de Lou para seguir ascendendo poderia ser transformada na obtenção de uma cobiçada conta por uma grande agência de publicidade. Daria basicamente no mesmo. Pouco precisaria ser adaptado se houvesse a troca de cenário. Portanto, o programa de Kathleen Robertson mais utiliza Hollywood como chamariz, dela aproveitando modelos e ícones, do que necessariamente acrescenta alguma coisa às abordagens ácidas sobre a Meca do cinema estadunidense. Nessa realidade, Marty (Finn Jones) não passa do peão sem importância (sequer corporativa) e Miles (Gerardo Celasco) é estritamente o marido da executiva que permite a discussão (rasa como um pires) sobre fidelidade e o impacto da arte burguesa. O melhor é não pedir muito, aproveitar o clima kitsch que flerta perigosamente com o mau gosto e curtir o entretenimento passageiro.
Uma coisa que não se pode dizer de Swimming with Sharks é que ela careça de personalidade. É preciso um bocado de presença de espírito e coragem para dialogar frontalmente com a vulgaridade, ora parecendo que vai transcender a superficialidade e mergulhar nas profundezas da sordidez humana, ora se contentando em ser um programa para consumo ligeiro ambientado numa realidade que tem pouco de cotidiana à maioria dos espectadores (estrelas, assassinatos, bizarrices de toda sorte e afins). Tucker Gates, o diretor dos seis episódios da série, perde uma oportunidade ótima de enfatizar a sincronicidade entre as duas personagens principais, algo que culmina na gestação compartilhada pelos milagres da medicina. O texto propõe a conexão, cria o terreno para isso ser explorado dentro da citada perspectiva camp, mas o realizador não completa a fatura do ponto de vista estético. Nesse sentido, cozinha um básico feijão com arroz no qual falta sal e outros sabores. Recorrendo a mais um lugar comum atrelado a essa Hollywood vista como purgatório da beleza e do caos, os idealizadores da série utilizam o sexo como elemento para investigar as relações de poder. Nada muito intenso, é bom dizer. No fim das contas, o destaque principal é a interpretação de Kiernan Shipka, auxiliada pela escolha dos figurinos adequados a essa proposta exagerada. O resultado é bom, mas ruim. Ruim, mas bom.
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