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Sinopse

Pressionado por uma leva de fracassos de bilheteria, um executivo de estúdio hollywoodiano começa a receber ameaças anônimas. Obcecado, ele mata o roteirista que julga ser o responsável e tenta se livrar da culpa.

Crítica

Provavelmente o cinema nunca foi tão irônica e habilmente implacável com Hollywood quanto em O Jogador. O diretor Robert Altman presta homenagens às obras e às estrelas de outrora, aos gêneros basilares da tradição cinematográfica norte-americana, na medida em que expõe a faceta menos glamorosa desse mundo, deflagrada, inclusive, pelas escusas engrenagens produtivas, do financiamento às concessões artísticas adequadas às pretensas fórmulas de sucesso. No começo do filme temos um prodigioso plano-sequência que apresenta a fauna natural dos estúdios, feita de figuras consagradas, assistentes assoberbados, administradores calculando possíveis lucros, visitantes deslumbrados, aspirantes ao estrelato, entre outros espécimes. Altman celebra a era de ouro trazendo à baila um procedimento análogo ao que abre o clássico A Marca da Maldade (1958). Um coadjuvante chega a mencionar duas vezes o longa-metragem de Orson Welles com amargura diante da atualidade de então, em que a montagem picotada e videoclíptica ditava a regra de um jogo “vencido” pelos blockbusters. Até hoje, pouca coisa mudou.

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O protagonista é Griffin Mill (Tim Robbins), engravatado que passa seus dias ouvindo histórias de roteiristas ávidos por notoriedade. Um deles, cuja ideia foi renegada no passado, sem ao menos uma satisfação, começa a enviar cartões postais o ameaçando ostensivamente, de maneira cada vez mais agressiva. Em meio à possibilidade de perder seu lugar para um executivo jovem que desponta na concorrência, Griffin sai à caça de seu algoz. Encontra um suspeito numa sessão de Ladrões de Bicicletas (1948), longa-metragem de Vittorio De Sica em que um homem penhora seus valores em busca de subsistência, não de autopreservação pura e simples, como ele. Então, Robert Altman faz de seu personagem principal um homicida, colocando na mesa a culpa como elemento importante, não necessariamente por sua presença, ao contrário, pela ausência. Griffin tem medo de ser pego, de amargar na cadeia, perdendo, assim, seu posto avançado no mercado. Suas consciência e moral parecem atrofiadas pelos anos de serviços prestados à indústria construída sobre cinismo e hipocrisia.

O roteiro primoroso de O Jogador, a cargo de Michael Tolkin, propicia a Altman a exploração de diversos gêneros e a referência, entre as mais e as menos evidentes, a outros cineastas. Uma rápida tomada da foto de Alfred Hitchcock na parede serve como uma espécie de gatilho ao suspense predominante dali em diante. A conversa telefônica de Griffin com June Gudmundsdottir (Greta Scacchi), a namorada do roteirista assassinado, por quem ele não tarda a se encantar, tem pitadas de erotismo, dimensão ampliada mais adiante na tórrida cena de sexo. A investigadora interpretada por Whoopi Goldberg se encarrega da parte cômica desse filme que constantemente muda seu registro principal, justo para honrar as possibilidades narrativas do cinema. Altman lança mão de seu conhecimento do seio hollywoodiano para mostrar como são pensados os êxitos e qual a relevância dada à arte em meio às cifras astronômicas, sem com isso esvaziar os personagens, evitando torna-los meras marionetes de uma tese. Poucos são os diretores que conseguiriam tamanho êxito transitando de maneira tão orgânica e inteligente por enfoques distintos que, aqui, se complementam.

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A crítica de Robert Altman se torna ainda mais mordaz quando ele alinha os conceitos de final feliz e impunidade. Do ponto de vista cinematográfico, um encerramento alegre tende a atrair mais público pagante, ou seja, é a prioridade dos estúdios sedentos por gordas bilheterias. Ao se livrar do fantasma da acusação, o protagonista de O Jogador conquista a mulher desejada, a despeito dos óbvios obstáculos, além de ascender a uma posição profissional proeminente. Esse movimento magistral, construído conscientemente sobre os cânones do entretenimento massivo, faz da metalinguagem a arma com que Altman aborda o sistema em que ele próprio está inserido, não como um soldado obediente, mas na condição de contrabandista – utilizando aqui uma definição de Martin Scorsese para designar diretores que impõem sua autoralidade mesmo trabalhando nas linhas de produção. O encerramento do filme dentro do filme, cujo resultado é exatamente tudo o que seu realizador rechaçara até então, rima com o desfecho desta obra-prima em que Robert Altman golpeia a quimera Hollywood, ferindo-a com suas próprias garras, sem perder um átimo de personalidade e classe.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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