Crítica


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Sinopse

Olívia é uma moça privilegiada, com uma vida aparentemente perfeita. As coisas começam a mudar quando ela se matricula numa aula de escrita criativa.

Crítica

O terceiro episódio da antologia norueguesa Coletivo Terror acontece em dois níveis. O primeiro diz respeito à diegese literária (não revelada prontamente como tal), em que personagens são manipulados de acordo com o bel prazer de uma escritora devidamente apresentada apenas nos minutos finais. Olivia (Dagny Backer Johnsen) vive num mundo aparentemente perfeito. Essa existência acintosamente desprovida de arestas denuncia que há algo errado. A jovem é paparicada pelo namorado que lhe arma surpresas ao acordar, tem um relacionamento ótimo com as colegas de apartamento e possui tempo/disposição suficientes para imergir num curso de escrita criativa. Quando questionada pela professora sobre um momento desesperador de sua vida, ela não menciona situações limítrofes, mas a perda do pônei de estimação, animal logo substituído para evitar traumas maiores. Seus pais, os mesmos que lhe deram um carro esportivo, são citados como diligentes.

Escritor do Mal avança em aula, ao destacar a orientadora falando da necessidade de desenhar uma curva descendente para personagens supostamente gozando de uma onda de sorte. É instigante o movimento de espelhamento dessas lições no cotidiano de Olivia, pois ele incute no espectador uma série de dúvidas quanto à natureza da protagonista. Seria ela alguém insolitamente atravessada pela influência de um criador com a onipotência das divindades ou simplesmente uma pessoa literalmente habitando as páginas de um conto ou de um livro? Esse questionamento é eficientemente nutrido pelo cineasta Geir Henning Hopland, sem tantas pistas de que haverá respostas suficientemente esclarecedoras. Todavia, elas aparecem adiante, mas não são de todo banais, pois remontam ao previamente mencionado na ficção que se desenrola com toques intensos.

Assim como os episódios anteriores de Coletivo Terror, Escritor do Mal carece de tempo para desenvolver a história. Porém, diferentemente de Três Irmãos Loucos, fração que apenas cria a armadilha sem sugerir previamente uma efetiva perturbação da realidade, esta terceira parte dá indícios constantes de que estamos testemunhando algo da ordem do ficcional, vide o comportamento dos coadjuvantes e a assepsia dos cenários principais. Especialmente o apartamento de Olivia, com seus papeis de parede reproduzindo paisagens naturais, denota que há estranhezas definidoras nessa camada, adiante delineada enquanto fruto efetivo de uma invenção. O duelo de escritores, ainda dentro dessa intrincada diegese literária, se ocupa de embaralhar as coisas, mas logo cede lugar ao segundo nível, aquele que aparece para explicar o tal emaranhado.

O churrasco em família, no qual Olivia é hostilizada pela sogra, ganha contornos peculiares porque apresenta consonâncias com a ficção até então apresentada. Geir Henning Hopland se atém à criadora que utiliza a escrita para expurgar seus demônios, a fim de encaixar determinadas peças conforme, pura e simplesmente, seus anseios. Assim sendo, a autora utiliza sua vida como matéria-prima, retorcendo-a impunemente para dirimir medos, frustrações e raivas. A indeterminação do limite que separa real e ficcional sugere o dado terrífico de Escritor do Mal, porque permite que a violência escoe da imaginação ao plano material. Essa transição abrupta ressalta uma provável perturbação de ordem psiquiátrica, vide a forma como a criadora não mais consegue estabelecer a vital separação entre o que pode ou não apagar com um simples toque de tecla.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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