Crítica


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Sinopse

As mais refinadas faculdades americanas podem representar uma enorme carga de stresss para seus alunos. Tensões sociais, a pressão acadêmica e o medo que vem com a chegada à idade adulta podem ser aterrorizantes. Pior que isso, só se você for um afro-americano, tendo que lidar com os alunos majoritariamente brancos e os estigmas associados a você pela sociedade.

Crítica

Cara gente branca, esse texto é público e para a leitura de todos, mas me dirijo com especial atenção a vocês, caucasianos como eu, pois aqui vai uma verdade inconveniente: nós temos privilégios; vários, muitos, todos. Nós andamos na rua sem medo de que a polícia nos pare, ninguém subestima nossa capacidade intelectual, nós não temos culturas usadas como excentricidade para agregar ao status quo por ser “diferentona”, nossas religiões são dominantes e levadas a sério pelo governo – mesmo que ele, na teoria, seja laico. Embora muitos de nós sejam pobres, a cor da nossa pele não é praticamente uma garantia de que vamos nascer na periferia e em condições de fragilidade, e além de tudo, podemos facilmente nos identificar em qualquer tipo de mídia, um espaço onde vamos encontrar heróis, músicos, autores e narrativas brancas para gente branca. Portanto, talvez seja difícil para pessoas como nós entender a importância de um seriado como Cara Gente Branca, baseado no filme homônimo de 2014 e protagonizado por negros, sobre temáticas negras, ou como ele subverte, de forma sutil, algumas expectativas linguísticas em relação a esses assuntos. E, ainda mais, porque o seu humor, apesar de fazer rir, causa mais desconforto do que leveza.

Pois sim, amada gente pálida, Cara Gente Branca é uma comédia. E nenhum demérito deve se seguir a essa constatação. Algumas das críticas e discursos mais efetivos em prol de uma causa se utilizam do riso, que apesar da própria definição, é algo sério e de difícil construção – já que o superficialismo nessa prática recorrentemente acarreta em piadas que se apoiam em quem não tem suporte. Aqui, acompanhamos a jovem (negra) estudante de Cinema na universidade Winchester, Sam White (a ironia começa no nome), vivida pela carismática Logan Browning. Ela é apresentadora do programa de rádio que dá nome ao seriado. Depois que alguns estudantes brancos resolvem dar uma festa com temática racista, os conflitos de Sam, do estudante de jornalismo Lionel (DeRon Horton), do candidato à presidência do conselho estudantil Troy (Brandon P. Bell), da alpinista social Coco Conners, dentre outros alunos negros, passam a girar em torno das decorrências do evento.

Porém, querida gente com menos melanina, nos acostumamos a ver a(s) cultura(s) negra(s) sendo representada(s) dentro de um estilo muito próprio, estabelecido com a blaxploitation e, mais tarde, com o movimento de Hip Hop, com muita cor e descontração, além da trilha marcante definindo praticamente um estilo – basta notar o tratamento estético dado a Luke Cage (2016) e The Get Down (2016), outros seriados da Netflix focados em personagens negros. Por isso o estranhamento quando, defendendo essas mesmas pautas, os alunos da Winchester surgem aqui sob uma fotografia levemente dessaturada, com baixíssima profundidade de campo, movimentos de câmera elegantes e quebrando a quarta parede não de forma leviana, mas com dosagem e muita sutileza, remetendo diretamente a trabalhos que costumamos classificar como sérios e sofisticados, uma vez que esse verniz normalmente abraça projetos com tramas intrincadas, políticas, povoadas de personagens pragmáticos e calculistas (e inevitavelmente brancos), graças ao lugar-comum estabelecido por filmes de cineastas como Steven Soderbergh e David Fincher.

E apesar disso, adorada gente branquela, a série não tem medo nenhum de investir em um humor caricato, marcado, que ao invés de soar incoerente com o resto da abordagem é, muito pelo contrário, ressaltado por ela. Isso não quer dizer que suas piadas sejam bobas ou rasas, e muito do tom descontraído da trama vem dos diálogos que aspiram ao screwball – outra vez, um recurso (aqui de roteiro) associado a filmes e seriados mais intelectuais e, claro, protagonizados por gente bem branquinha. E falar de pautas negras usando de uma linguagem que não costuma dar voz a elas, é um meio bem eficaz de fazer gente branca ouvir o que tem de ser falado.

Assim, venerada população caucasiana, mesmo que seja engraçado o arrependimento imediato de Kurt (Wyatt Nash) ao fazer uma pergunta idiota a Sam, a piada não deixa de nos lembrar incomodamente dos séculos de escravidão, cujo desfecho foi uma alforria sem qualquer política de reintegração social. Muito pelo contrário, conforme ressaltado por outros momentos da série, houve na verdade na maior parte dos países medidas legais para segregar e reassociar essa população recém “livre” como mão de obra barata, e até mesmo como escravos outra vez, e isso por meios legais, como muito bem denunciado pelo documentário A 13ª Emenda (2016). Pois o que nós não sentimos na pele (a gente que tem pele branca), é que o vão deixado pela escravidão na economia teve de ser sistematicamente preenchido outra vez, e de forma imediata (!). Isso criou mecanismos que passaram a ser parte naturalizada da estrutura política e social, e que hoje resultam na marginalização, na tipificação e na falta de representatividade negra na sociedade como um todo.

Bela gente de pele clara, Sam, Troy, Lionel, Coco, entre outros personagens, são apenas as versões romanceadas e, digo mais, até privilegiadas dos seus contrapontos na realidade – já que, apesar de tudo, eles ainda podem estar dentro de uma universidade, o que simplesmente não é um sonho possível (sim, isso é uma alfinetada no filme da Sandra Bullock) para a maioria dos jovens negros pelo mundo, mesmo no Brasil, com política de cotas e tudo. Por isso, ousamos dizer que projetos como esse são mais voltados a nós. Afinal, assim como seria para qualquer outra minoria, para a população negra também é de extrema importância ver personagens com os quais possam se identificar, que dividem suas pautas e vivências, ganhando espaço e de forma tão bem produzida – e a Netflix tem sido militante e exemplar nesse quesito. Porém, para que reais mudanças aconteçam, é preciso que todos entendam seu papel nesse cenário, e ele começa ao aceitar que as coisas não estão bem, que escravidão não é uma coisa do passado, que vitimismo é dizer que “cota racial vai tirar a vaga do meu filho”.

Cara gente branca, se em dúvida de por onde começar a se desconstruir, pegue esse seriado na Netflix, e depois vá atrás de suas referências, as musicais (como Straight Outta Compton), as cinematográficas (como Faça a Coisa Certa, 1989, e o subgênero das blaxploitations) e as bibliográficas (como James Baldwin). Faça mais e fale sobre ele e essas inspirações, instigue o debate e o aprofundamento de seus temas, martelados com força durante os dez curtos episódios, mas apenas pontuados – a série se propõe a nos divertir enquanto desperta tópicos incomodativos, e ela consegue. Cabe a nós, entretanto, realmente assumir a bronca ou não. E aí? É bem verdade que tenta discutir também o feminismo e as questões LGBTQ, mas essas passam de forma mais superficial, e não deixa de ser decepcionante que, por mais que sirva para provar um ponto, um de seus capítulos seja inteiramente dedicado a um personagem branco. Mas isso não compromete o esforço como um todo, que além de dinâmico e, portanto, acessível (é fácil maratonar a temporada inteira), traz pro palco, e com tempo de sobra, gente que precisa de espaço pra falar – o que, literalmente, não foi possível ao pessoal de Moonlight (2016) no Oscar, por exemplo, filme que ganha uma continuidade interessante de suas temáticas em produções como essa, que não por acaso, tem um dos seus episódios dirigidos por Barry Jenkins.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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