“Por que você quer dançar?”
“Por que você quer viver?”
“Bom, eu não sei exatamente o porquê. Mas eu Preciso”
“Essa é a minha resposta também”

O ano de 2018 marcou aniversários de filmes de grande relevância e impacto. São 90 anos desde que Charles Chaplin esteve em O Circo (1928) e seis décadas do lançamento de Um Corpo que Cai (1958), possivelmente o mais aclamado dos trabalhos de Hitchcock; enquanto isso, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) completou meio século de ampla influência cultural, as mesmas velinhas assopradas pelo brasileiro O Bandido da Luz Vermelha e por clássicos como Era Uma vez no Oeste, O Bebê de Rosemary e A Noite dos Mortos-Vivos (todos também de 1968). Já 1978 ficou 40 anos no passado, junto com Superman: O Filme e O Franco Atirador. Até marcos contemporâneos estão saindo da primeira infância: Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008) fez seus primeiros dez anos em meio a uma temporada com diversos filmes de super-heróis. Com tantos fazendo festa, talvez seja possível esquecer que o diálogo ali em cima completa, também em 2018, nada menos do que 70 anos. Pois, mesmo entre os cinéfilos, Os Sapatinhos Vermelhos  (1948) não é uma obra que costuma ser apontada como indispensável. Entretanto, a obra-prima da dupla Michael Powell e Emeric Pressburger influenciou de maneira seminal trabalhos que vão de Martin Scorsese a La La Land: Cantando Estações (2016) – ajudando, portanto, a configurar o Cinema como o conhecemos hoje.

O roteiro se apropria do conto homônimo de Hans Christian Andersen sobre uma camponesa refém de sapatinhos encantados que a fazem dançar até a morte. Boris Lermontov (Anton Walbrok) é o diretor de uma respeitada companhia de ballet europeia, e está orquestrando uma releitura da trágica fábula, mas não consegue achar uma dançarina que viva a protagonista atendendo aos exigentes parâmetros de técnica e dedicação que procura. Problema resolvido quando é apresentado à Victoria Page (Moira Shearer), por quem passa a nutrir certa obsessão, enquanto a moça enfrenta seus próprios demônios ao se dividir entre a paixão e ambições na dança e um romance embrionário com o compositor Julian Craster (Marius Goring).

Apesar da temática, da paleta de cores vivas e da direção de arte grandiosa e ostensiva, Os Sapatinhos Vermelhos não chega a se configurar como um musical – tampouco possui o alto astral, o bom humor ou mesmo as figuras carismáticas que marcavam o gênero, tão popular na época. Muito pelo contrário, o tom se aproxima mais do noir do que da Broadway. Um pesadelo em Technicolor recheado de personagens dúbios e pessimismo. Não à toa, foi recebido de maneira, no mínimo, estranha.

Produção britânica, na Inglaterra não recebeu grande atenção. Michael Powell e Emeric Pressburger, dupla que ficou conhecida pela alcunha de Arqueiros, vinham de uma série de títulos aclamados e de grande apelo junto ao público inglês – especialmente porque, de uma maneira ou de outra, abordavam a guerra como tema. Trabalhando juntos desde O Espião Submarino (1939), navegavam entre dramas carismáticos e emotivos e um humor leve e sagaz que jamais denunciaria a guinada que deram em Narciso Negro (1947), thriller psicológico sobre um grupo de freiras isoladas nas montanhas do Himalaia, seus desejos sexuais reprimidos e o questionamento das crenças cristãs.

Foi ali, com Narciso Negro, que Powell e Pressburger começaram a perder boa parte de seu público cativo na Inglaterra, que provavelmente sentiu-se traído quando os Arqueiros fugiram das temáticas “honradas” levantadas pela guerra para abordar de forma tão cética e sombria questões delicadas para as audiências britânicas da década de 1940 – especialmente no pós-Segunda Guerra. Agora, uma coisa não se pode negar sobre a dupla: eles sempre lidaram com personagens humanizados e complexos. As figuras nos seus filmes nunca foram apenas boas ou más, mas recorrentemente cinzentas e atormentadas por isso – de novo, uma tendência mais alinhada ao Cinema Noir do que aos grandes lançamentos populares da época, que possuíam heróis e vilões bem definidos e incorruptíveis em suas designações.

E, no que se trata de Os Sapatinhos Vermelhos, isso não chocou tanto assim o público estadunidense – menos ferido como nação após o fim do conflito bélico. Houve, inclusive, um certo rebuliço a seu respeito, permitindo que ficasse em cartaz por impressionantes 110 semanas. A popularidade da obra no outro lado do Atlântico não é para ser ignorada, pois lhe garantiu duas estatuetas da Academia – os Oscars de Melhor Direção de Arte e Trilha Sonora – tendo sido indicada ainda a outros três, incluindo Melhor Filme. Um queridinho um tanto cult nos Estados Unidos, acabou rapidamente fazendo parte da programação de TV e de inúmeras reprises as quais, segundo Martin Scorsese contou ao Independent, ele sempre assistia quando era mais jovem, mesmo transmitido em preto e branco. O aclamado cineasta lembra que assistiu à obra dos Arqueiros no cinema, junto com o pai, quando tinha entre 9 e 10 anos, e que depois ao revê-la na televisão, ficava imaginando as cores espetaculares retidas na sua memória de infância. A obsessão por aquelas cores concebidas por Powell, Pressburger e seu diretor de fotografia, Jack Cardiff, moveram Scorsese numa jornada que o levaria, mais tarde, a conhecer e mudar a vida do próprio Michael Powell.

Enquanto isso, Powell e Pressburger, desacreditados após a recepção de Os Sapatinhos Vermelhos na Inglaterra, aos poucos começaram demonstrar desgaste nas suas colaborações. Mesmo retomando as temáticas de guerra, jamais conseguiram alcançar o prestígio de outrora. Tanto que A Batalha do Rio da Prata (1956) selou de vez os letreiros antes tão icônicos que precederam diversas obras abraçadas pelo público: “Escrito, produzido e dirigido por Michael Powell e Emeric Pressburger”. Porém, tal qual o conto de Andersen, mesmo contra a vontade de tantos, os sapatinhos continuaram a dançar.

É notória a inspiração, por exemplo, em Sinfonia de Paris (1951), filme no qual ninguém menos do que Vincente Minnelli conduz uma arrebatadora sequência de dança com mais de 17 minutos de duração – Os Sapatinhos Vermelhos é marcado por um interlúdio de ballet com aproximadamente um quarto de hora. Gene Kelly, astro do longa de Minnelli, dizia ser obcecado pelo filme dos Arqueiros, e o mostrou aos produtores da MGM mais de uma vez para convencê-los a investir nesse megalomaníaco número musical de encerramento – a produção acabou levando para casa cinco Oscars, além do de Melhor Filme.

Porém, Sinfonia de Paris acabou absorvendo mais do que isso de sua fonte de inspiração. Embora aqui se apliquem as definições de um musical hollywoodiano, basta alguns minutos de projeção para perceber que o roteiro não lida com personagens preto no branco, indo igualmente na contramão e configurando personalidades nem tão ao céu ou ao inferno: uma ricaça que seduz compulsoriamente jovens artistas até perder o controle sobre eles; um pintor que se deixa ser comprado para se tornar famoso, mas que acaba apaixonado por uma mulher comprometida; esta, por sua vez, está apaixonada por ele, apesar de sentir que deve se casar com outro homem que lhe ajudou em épocas de dificuldade. Muito diferente do que o próprio Gene Kelly viveria um ano depois em Cantando na Chuva (1952), o protagonista é um homem de desejos ambíguos e decisões morais questionáveis, apesar de habitar um universo de música, dança e muita cor.

Sinfonia de Paris (à esquerda) e La La Land (à direita)

A antológica cena final do longa de Vincente Minnelli seria a principal e descarada inspiração para o clímax de La La Land: Cantando Estações (2016), só para que se tenha uma noção do quanto se estende o impacto discreto de Os Sapatinhos Vermelhos ainda hoje. Da mesma forma, Dario Argento iria emular aqueles 15 minutos de puro horror da sequência de ballet, inflando-os no inebriante e perturbador Suspiria (1977). Ambos, inclusive, são referências óbvias para Cisne Negro (2010), enquanto o esquema de cores em Technicolor concebido por Powell, Pressburger e Cardiff ainda serve como uma espécie de manual para Scorsese e Guillermo del Toro – o vermelho, que lá servia para assinalar a influência dos sapatinhos amaldiçoados, é usado escancaradamente como símbolo de violência e morte nos filmes de ambos os cineastas.

Martin Scorsese, inclusive, focado na tarefa de tentar achar uma cópia colorida em 16mm e bem preservada de Os Sapatinhos Vermelhos, acabou conhecendo o próprio Michael Powell, na época relegado ao esquecimento, e os dois tornaram-se amigos. Inclusive, foi Scorsese quem apresentou a ele sua leal colaboradora, a montadora Thelma Schoonmaker, com quem Powell acabou se casando. Schoonmaker e Scorsese supervisionaram juntos, após a morte do Arqueiro, a restauração e o relançamento de Os Sapatinhos Vermelhos, em 2009. O cineasta vencedor do Oscar por Os Infiltrados (2006) diz que o longa é um dos filmes que mais ecoa em suas obras, e, definitivamente, um dos seus favoritos de todos os tempos.

Uma grande interpretação de simplicidade só pode ser alcançada através de grande agonia do corpo e do espírito.”

O feito dos Arqueiros realmente demandou um grande sacrifício que se desdobrou no resto de suas vidas. Entretanto, furtivamente, o ballet se estendeu por bem mais do que os 15 minutos de tela. A precisão e técnica com que Powell e Pressburger compuseram essa obra-prima se comparam diretamente à dança que toma centro na narrativa. Nesses seus significativos 70 anos, seria bom lembrar que, em algum lugar, nos bastidores de algum filme ou de alguma tendência cinematográfica que o grande público aplaude em sessões lotadas, os sapatinhos vermelhos ainda não pararam de dançar.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
avatar

Últimos artigos deYuri Correa (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *