Crítica


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Sinopse

A trajetória da primeira mulher milionária dos Estados Unidos, Madam C.J. Walker conquistou seu verdadeiro império ao criar uma linha de produtos capitares e cosméticos especialmente para mulheres negras.

Crítica

Há um importante fato a ser observado na tradução do título dessa minissérie original da Netflix, realizada em parceria com os Estúdios Warner. Ainda que o pronome de tratamento ‘madam’ tenha se mantido igual ao inglês (o que não faz muito sentido, já que todo o resto foi traduzido para o português, acentuando a esquizofrenia nos batizados dessa plataforma de streaming), todo o resto foi alterado. Pois, se no original o programa se chama Self Made: Inspired by the Life of Madam C.J. Walker (Feita por Conta Própria: Inspirado na Vida da Madame C.J. Walker, em tradução direta), aqui no Brasil o nome recebido foi A Vida e a História de Madam C.J. Walker. E se ambas denominações parecem bastante próximas, uma palavra foi omitida na adaptação, justamente aquela que termina por fazer a diferença: “inspired”, ou seja, “inspirado”. Entende-se: não se trata de um trabalho documental, nem mesmo de uma adaptação preocupada com a acuracidade histórica. Em resumo, a trama dividida em quatro episódios de menos de uma hora cada parte de uma trajetória real, mas moldou os acontecimentos relacionados a seu bel prazer, exagerando na ficção em nome de uma maior fluidez narrativa, ao mesmo tempo em que investiu no detrimento da sua precisão. Fantasia, portanto, é o que está mais próximo.

Apesar de já contar com três indicações ao Oscar, apenas no ano passado Octavia Spencer teve sua primeira oportunidade como protagonista, com o suspense Ma (2019) – que custou US$ 5 milhões e arrecadou mais de dez vezes esse valor nas bilheterias de todo o mundo, justificando o investimento e a sua escolha. A Vida e a História de Madam C.J. Walker é apenas a sua segunda oportunidade de liderar um projeto. Chama a atenção perceber, no entanto, que apesar dela estar presente em mais de 90% das cenas, nenhuma das situações aqui representadas parecem exigir da intérprete mais do que aquilo que aqueles que a acompanham há algum tempo muito bem conhecem. A tal Madame C.J. Walker, nascida Sarah Breedlove, é uma figura que Spencer já visitou em diversas ocasiões anteriores – a diferença é que, acostumada a ser coadjuvante, dessa vez se refestela em uma posição mais privilegiada. Ou seja, tem-se mais, mas é mais do mesmo.

Sarah Breedlove era uma lavadeira, na virada do século XIX para o XX, no sul dos Estados Unidos, que sofria de baixa autoestima por uma questão pontual: os maus tratos ao seu cabelo, que começavam a cair. Isso, ainda mais para uma mulher negra, é um problema grande, e que não pode ser menosprezado. Porém, ao contrário do que se viu em filmes como Felicidade Por Um Fio (2018), em que o debate sobre o cabelo negro ganha ares de empoderamento feminino apenas no âmbito amoroso, dessa vez o foco é levado para o ambiente profissional. Quando tem seu visual resgatado, graças à intervenção de uma suposta amiga, Addie (papel de Carmen Ejogo), ela logo sofre outro baque: essa se recusa a permitir que a vizinha se torne uma das vendedoras de porta-a-porta do produto que criou. E por um simples motivo: “não quero a sua imagem associada à minha”. A questão é clara, e não está apenas no cabelo. Afinal, a pele de Sarah é escura demais, talvez já tenha passado da idade, e seu corpo não é tão sinuoso quanto a outra imagina ser o ideal publicitário para conquistar outras mulheres. Ela pode ter perdido uma batalha, mas não a guerra. E é quando decide dar início ao seu próprio negócio.

Ainda que seja dirigida por duas mulheres negras – Kasi Lemmons (Harriet, 2019) e DeMane Davis (que passou por séries como Você, 2019, e Lições de um Crime, 2019-2020) – A Vida e a História de Madam C.J. Walker possui uma estrutura convencional, que pouco oferece de diferencial aos seus espectadores. Essas intervenções, no entanto, quando surgem, mais geram ruído do que colaboram com o andar dos eventos. Organizado de modo episódico, os fatos que vão pontuando a trajetória de Sarah Breedlove vão sendo expostos na telinha sem muito cuidado, um simplesmente sucedendo ao outro, como capítulos de uma novela. A concorrência com a antiga amiga, a mudança de cidade, o incêndio que quase coloca tudo a perder, a decisão de investir em uma fábrica, a briga com o marido, as traições que volta e meia surgem em seu caminho, a possibilidade de se associar a outros homens e mulheres negros de sucesso, as expectativas que acabam sendo frustradas e as vitórias inesperadas que mudam o curso das coisas: tudo é exposto de uma forma didática, e nada parece ter mais peso do que o capítulo seguinte. Assim, o painel se torna amplo, mas pouco relevante, uma vez que se sabe de antemão onde tudo irá parar: na sua consagração financeira, é claro.

Há outras questões problemáticas em cena, e dizem respeito, principalmente, aos três principais personagens que circundam Sarah. Primeiro, a própria Addie, figura mal construída, tanto pelo roteiro, quanto pela atuação indecisa de Ejogo, que não sabe se deve se portar como uma colega de agruras (o que faria mais sentido) ou como uma arqui-inimiga declarada (um exagero que beira o cômico). Ela é capaz de fazer uso de espiões para sabotar a concorrente, mas também a aplaude diante de um discurso emocionado, apenas para logo se voltar contra ela novamente. Essa irregularidade se vê também no papel de Blair Underwood, o galã que surge como o real C.J. Walker, marido da protagonista. Ainda que os dois não possuam química, é bonito acompanhar Octavia Spencer naquele que seja talvez o seu primeiro desempenho romântico na ficção: os dois se beijam, dividem a cama e também brigam como um casal de verdade. Mas ele é fraco, e se coloca a relação a perder, é também pelos motivos mais óbvios – o que não colabora com o desempenho do ator. Por fim, temos sua herdeira, vivida por Tiffany Haddish – que possui apenas 7 anos de diferença em relação à Spencer! Se visivelmente elas não convencem como mãe e filha, o fraco desempenho da atriz – que possui uma subtrama particular que deveria alcançar maior peso, incluindo com um relacionamento lésbico – termina por sabotar qualquer perspectiva a respeito do encontro das duas.

Assim como filmes recentes, como O Banqueiro (2020) ou Luta Por Justiça (2019), A Vida e a História de Madam C.J. Walker faz parte de um visível esforço de Hollywood em resgatar episódios reais vividos pela comunidade negra nos Estados Unidos, oferecendo a eles o lugar de direito na memória do país. No entanto, essas obras evidenciam que não basta apenas oferecer tais espaços: é preciso preenchê-los com competência e determinação. É saudável vê-los sendo ocupados, mas para que essas intenções se tornem mais recorrentes e de efeito prático, será necessário também tempo e dinheiro para que se concretizem de acordo com o contexto esperado. Talento, afinal, há de sobra. Assim como material a ser aprofundado e desenvolvido. É mais do que chegada a hora desses exemplos virem à luz. Mas não de qualquer jeito e sem o cuidado que os mesmos exigem, por favor.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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