Para os olhares internacionais, o cinema francês é conhecido como berço da crítica autoral (vide a importância das revistas Cahiers du Cinéma e Positif), da política dos autores e da Nouvelle Vague, formada essencialmente por diretores vindos da crítica de cinema (Jean-Luc Godard, François Truffaut, Éric Rohmer etc.). Por isso, muitos cinéfilos têm a impressão de um país onde a crítica é unanimemente respeitada.
Ora, este nem sempre foi o caso, especialmente quando os textos especializados se confrontam às produções populares – como nos demais países, as comédias escrachadas e outros gêneros populares costumam ser menos apreciados pelos críticos. Em 25 de outubro de 1999, o diretor Patrice Leconte (de Confidências Muito Íntimas, 2004) enviou um fax à ARP (Associação de Autores, Realizadores e Produtores na França) com a seguinte mensagem:

“Caros amigos,
Há algum tempo, estou consternado com a atitude da crítica em relação ao cinema francês. Não me sinto mais atingido do que qualquer outro diretor (talvez até menos, aliás), mas apenas constato o que se escreve sobre nossos filmes aqui e acolá. Algumas publicações, que mais se parecem com assassinatos premeditados, me dão arrepios, como se os autores estivessem encarregados de matar o cinema francês comercial, popular, feito para o grande público. Não sei o que podemos fazer diante desta situação crítica (o termo é divertido). Eu tenho algumas ideias, mas não sei se são boas. Adoraria conversar com vocês de maneira informal. Obrigado por não me deixarem sozinho em minha raiva e perplexidade.
Amigavelmente,
Patrice Leconte”.

O diretor Patrice Leconte

A carta foi repassada aos jornais, que rapidamente solicitaram uma entrevista com o diretor. Ele se explicou ao Libération sobre as medidas propostas: Leconte acreditava que a crítica de cinema era responsável pelas baixas bilheterias do cinema popular, pela dominação norte-americana, e que deveria se comprometer a não publicar nenhuma crítica negativa sobre filmes nacionais, expressando-se apenas quando gostasse dos filmes. Assim, em suas palavras, a crítica se tornaria enfim um “parceiro atento” do audiovisual francês.
As reações foram violentas. Inúmeros jornais publicaram artigos a respeito, questionando o papel da crítica de cinema. Enquanto isso, os membros da ARP se reuniram e publicaram um manifesto, redigido por Bertrand Tavernier (de Um Sonho de Domingo, 1984), intitulado “A crítica dos cineastas”. Os signatários sem posicionaram contra “a semântica do ódio e do desprezo” nos textos críticos, além do “prazer de destruir e machucar”. O pedido de Leconte foi então reformulado: “Nós solicitamos que nenhuma crítica negativa de um filme francês seja publicada antes do fim de semana de seu lançamento nas salas de cinema”.
Além de Tavernier e Leconte, o texto foi assinado por mais de 80 diretores, dentre os quais Bertrand Blier, Catherine Corsini, Olivier Ducastel, Robert Guédiguian, Cédric Klapisch, Agnès Merlet, Nicolas Philibert, Rithy Panh, Yves Robert, Jacques Rozier, Claude Sautet, Pascal Thomas e Christian Vincent.

O “manifesto dos cineastas de 1999”, como ficou conhecido, despertou o maior volume de textos sobre a crítica de cinema, redigidos tanto por críticos quanto por jornalistas, artistas e autores, na história da imprensa escrita francesa. Mais de vinte dossiês especializados foram publicados na Cahiers du Cinéma, Positif, Le Monde, Libération, Télérama e na revista Cinéma, entre outros. Nestes veículos, alguns autores se posicionaram contra o manifesto, em defesa da liberdade de expressão irrestrita, incluindo Catherine Breillat, Romain Goupil, André Téchiné, Jean-Louis Comolli e Malik Chibane.
A polêmica se estendeu até o primeiro trimestre de 2000. O caso teve poucos efeitos práticos: a revista Positif, por exemplo, aceitou limitar a publicação de textos desfavoráveis ao cinema francês antes de seu lançamento em salas de cinema, segundo o membro N.T. Binh. A revista Le Nouvel Observateur adotou atitude semelhante. Em contrapartida, a maior parte dos veículos manteve sua ordem de publicações e linha editorial no que diz respeito ao cinema francês.
Por fim, o episódio serviu para relembrar a oposição clássica entre a crítica de cinema e os filmes populares; a dificuldade de implementar mecanismos de censura em países de forte tradição democrática, e a dissociação indispensável entre crítica de cinema e propaganda (favorável ou desfavorável) a qualquer filme. Quando a crítica for condicionada aos números de bilheteria, a atividade livre e analítica estará morta.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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