É claro que o título deste artigo tem uma forte conotação provocativa. Mas, caro leitor, essa questão proposta em tom de estímulo deveria efetivamente preocupar todos que trabalham na área, bem como aqueles que acreditam na crítica como função essencial. Quando a gente recorre à História, percebe que boa parte dos rudimentos de análise cinematográfica tinham a ver com as chamadas notícias de valor, ou seja, os textos se debruçavam bem mais sobre a validade da experiência, do programa como um todo. As resenhas continham apontamentos acerca das características físicas das salas de cinema, das orquestras que acompanhavam frequentemente sessões concorridas, além de resvalar na crônica social. Trocando em miúdos, inclusive porque o cinema era tido essencialmente como uma atividade voltada ao entretenimento – estamos falando lá pelos anos 1920 –, os textos acabavam servindo para que os leitores soubessem onde deveriam aplicar seu suado dinheirinho. Felizmente, os estudos do cinema como arte avançaram ao ponto de o considerarmos potencialmente bem mais que um simples passatempo, ora frugal e vulgar.

É preciso também não perder no horizonte a ligação umbilical entre arte e indústria. O cinema sempre conteve esses dois aspectos aparentemente conflitantes. Ambivalente, a Sétima Arte viu suas grandes revoluções – Expressionismo Alemão, Neorrealismo Italiano, Nova Hollywood, etc. – consolidando-se também por conta do considerável êxito comercial ou, ao menos, em virtude dos caminhos novos apontados igualmente ao mercado. Nesse sentido, o trabalho do crítico de cinema sempre pendeu entre essas naturezas aparentemente antagônicas, mas conviventes. São muitos os casos de textos que afundaram carreiras, outros tantos que, num movimento contrário, iluminaram devidamente obras obscurecidas, inclusive, por conta da falta de poder de fogo industrial. Basta nos lembrarmos de como o trabalho do então crítico/cineasta francês François Truffaut foi essencial para quem alguém como Alfred Hitchcock, antes considerado nos Estados Unidos como um marqueteiro que agradava o público, fosse devidamente alçado ao panteão da genialidade que merece habitar como poucos colegas. O pensar cinema ainda é primordial.

Mas, vamos voltar à questão de uma possível involução, deixando claro que não estou partindo do pressuposto de que a crítica evoluiu de modo retilíneo, mas atendo-me às similaridades entre os rudimentos da atividade e parte do momento atual. O que vem acontecendo, especialmente com o advento da internet, precisamente depois da popularização das redes sociais, é a atividade em grande escala como ajuizamento de valor. A digitalização dos processos e a consequente criação de espaços em que receptores viraram emissores trouxeram enormes benefícios à crítica. Podemos colocar nesse lugar a melhor circulação, a amplitude de vozes (antes não chanceladas pela chamada grande imprensa), enfim, são muitos os ganhos. Entretanto, há também uma série de perdas, como a ascensão de uma parcela menos decidida a estudar antes de falar, pouco afeita a lançar-se num interminável caminho que, além do contato com filmes de todos os tempos, nacionalidades e filiações, também suscita a necessidade de um estudo profundo e contínuo. E o mercado, que não é bobo nem nada, sempre esteve de olho nessa parcela capaz de compreender os tantos mecanismos de popularidade, disposta a dar/ter visibilidade em prol do marketing.

Por certo, há profissionais militando em campos bastante distintos da crítica. Essa pluralidade não apenas é ótima, como vital. Porém, o triste é constatar que muitos candidatos a críticos de cinema, ou já atuantes na área, se contentam com pequenos apontamentos repletos de adjetivos, frases de efeito para fisgar leitores/audiências mais vulneráveis a platitudes, estão conseguindo uma notoriedade desproporcional justamente porque se aliaram voluntariamente ao mercado. O trabalho do crítico não deve servir de suporte à campanha de divulgação dos filmes, tampouco deve ser pré-condicionado pela intenção de conseguir esta ou aquela vantagem com anunciantes e afins. Quando questiono se estamos involuindo é porque o que mais temos visto ultimamente, inclusive em veículos conceituados, é uma conveniente acomodação com leituras pouco atentas, elogios ou reprimendas cheias de exageros, carentes da ponderação que a atividade pede, em manifestações que se assemelham ao bom e velho “vale à pena gastar seu rico dinheirinho ou não”. Ou seja, voltamos à época em que critica e notícia de valor se confundem.

É óbvio que o mercado, do qual os críticos também dependem em alguma medida, inclusive porque dele fazem parte, vai se apropriar de uma crítica positiva, por exemplo, como subterfúgio à divulgação: “assistam ao filme tal, porque o fulano indicou”. Contudo, o que é absolutamente reprovável é condicionar-se nesse sentido, incorrendo na possibilidade de se tornar uma mal remunerada peça de publicidade, labutando em troca de compartilhamentos e brindes. O crítico deve buscar um diálogo franco com a obra, ciente da subjetividade da perspectiva, das próprias limitações, de suas ocasionais ignorâncias, dos atravessamentos que direcionam olhares específicos. Quando entre esses fatores entra a necessidade de ganhar pontos com este ou aquele ou “aliviar”, pensando em termos de relacionamentos, a vaca vai para o brejo. É preciso estabelecer uma relação adulta, responsável e profissional com o mercado, que, com exceções, saberá respeitar a integridade e a consistência dessa atuação. Aduladores podem ter os seus 15 minutos de fama, mas essa luminosidade assim como é conferida, é tirada ao bel prazer de quem pode.

Até mesmo a nomenclatura “influenciador” é bem complicada. Do meu ponto de vista, evidentemente. A influência pressupõe certo ditado de tendências, ou seja, alguém assumindo uma posição de farol aos carentes de iluminação. E, não raro, essa “influência” está à disposição dos anunciantes que mais pagarem para a reputação se transformar em ferramenta de propaganda. Evidentemente, críticos que trabalham em veículos comerciais também dependem da adesão monetária de investidores para serem remunerados e continuar pagando seus boletos (que geralmente são muitos e irritantemente frequentes). Mas, há uma diferença não tão sensível assim entre quem garante espaço no mercado com um trabalho encorpado, fruto de reflexões e de uma tentativa (porque nem sempre a gente consegue, é bom dizer e reiterar) de construir uma ponte sólida entre os filmes, as séries e os leitores/espectadores, e os que têm jornadas meteóricas impulsionadas pelas falácias e os elogios tendenciosos. Não é função da crítica de cinema determinar o que os espectadores verão ou deixarão de ver. A essa atividade tão laboriosa quanto bonita é primordial o amor pela Sétima Arte e o compromisso com os que nos têm como referências. O resto é perfumaria e publicidade.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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