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Sinopse

Pressionada pela família a engravidar, uma mulher kosovar precisa lidar com lembranças dolorosas do passado, vivendo um dia de cada vez num entorno que lhe impõe uma série de responsabilidades.

Crítica

Lume (Adriana Matoshi) vive numa região agrária do Kosovo. Sua rotina inclui o trato com os animais e outros afazeres domésticos que a tradição imputa à mulher. Dessas obrigações, a principal é ser mãe. Mais que uma benção ou algo semelhante, a “missão” é um fardo pesado à protagonista de Zana. A cineasta Antoneta Kastrati documenta paulatinamente o entorno opressor, os costumes perpetuados como se fossem regras pétreas da natureza. Sem conseguir engravidar, a kosovar é arremessada de um lado para o outro, passando por médicos, videntes e curandeiros. Especialmente a sua sogra, vivida por Fatmire Sahiti, é uma espécie de guardiã dessa noção de que a fêmea nasceu para reproduzir, como se confinada num curral simbólico, talhada para fazer determinada coisa e destituída de sentido se impossibilitada por algum motivo. Desde o princípio há essa equivalência entre Lume e os bichos da propriedade, seja as vacas criadas presas para dar leite ou as galinhas mantidas para fornecer os ovos e depois a carne. A esposa também é valorizada por sua função.

Além dessa construção do papel social feminino numa coletividade tacanha, Zana apresenta as crenças no misticismo sobrepujando a perspectiva psicológica. Em nenhum momento qualquer coadjuvante atribui a tristeza de Lume, bem como sua dificuldade para engravidar, à dor lancinante pela perda da filha durante a guerra do Kosovo. Aliás, a violência que se abate sobre ela igualmente reside na anulação de sua vontade, pois ninguém a consulta sobre desejar realmente ter outra criança. Essa sina lhe é imposta justamente pelo fato de ser mulher, percebida dentro daquela pequena comunidade como investida pela natureza de um propósito ao qual não pode fugir. Nesse sentido, a única explicação cabível àquele entorno ignorante é a existência de entidades espirituais que supostamente se encarregariam de bloquear os caminhos do que é “natural”. A câmera permanece sempre que possível no semblante embotado de Adriana Matoshi (cuja interpretação é excepcional), fazendo dele um sintoma de impotência. Ali, praticamente não há alternativas às mulheres.

Um dos grandes predicados de Zana é manter-se atento à complexidade das circunstâncias e dos personagens, evitando terminantemente a simplificação e o obscurantismo nos quais muitos destes incorrem com naturalidade. Antoneta Kastrati não exime as pessoas das responsabilidades por seus atos, mas tampouco permite a edificação de vilões estereotipados, pois todos ali são solapados por uma herança, ainda que em medidas bem diferentes. É indicativo disso a sogra, aquela que mais se lança com afinco à tarefa de zelar pela gravidez supostamente capaz de reequilibrar as coisas. Provavelmente reprimida desde seu nascimento, algo que podemos pressupor em virtude da consistência das observações que tangem ao grupo local, ela talvez nem se perceba como opressora empedernida. E Fatmire Sahiti interpreta essa matriarca com sensibilidade e atenção às nuances, manifestando uma carga de afetuosidade, inclusive, quando toma atitudes controversas, bastante agressivas e comprometedoras da relação de simpatia com o espectador. Algo bem diferente da fúria mais crua do pai de Lume, munido de uma autoridade ancestral pelos séculos de dominação masculina.

Flertando habilmente com o horror, Antoneta Kastrati faz de Zana um filme em que o principal está nas entrelinhas, nos não ditos e subentendidos. Ela evita polarizações e maniqueísmos. Obviamente, há um pesar pela negligência da fonte psicológica da dor da protagonista, mas nem por isso as forças sobrenaturais são inexistentes e/ou obsoletas completamente. O sujeito que cobra fortunas por consulta fala de possessões e tem realmente pinta de charlatão. Mas, ele ganha um contraponto interessante na curandeira que de fato enxerga a verdade por trás dos tantos véus das aparências. Não por acaso, homem e mulher. Do mesmo jeito, o material humano não é resignado a preconcepções. Até as pessoas mais superficialmente confortáveis em determinados arquétipos têm espaço para, ainda que obliquamente, revelar-se afetadas pela noção patriarcal que aprisiona e asfixia. A câmera está sempre fomentando vínculos e espelhamentos, chamando nossa atenção àquilo que os olhos e os julgamentos não alcançam. A terra, as fêmeas e Lume se irmanam numa perspectiva ontológica.

 

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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