Crítica


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Sinopse

O diagnóstico de Alzheimer muda as perspectivas de Emílio. Na companhia de sua família, ele decide partir em busca de seu amor de infância, antes que seja tarde demais. A estrada será árdua, mas lhe trará ensinamentos.

Crítica

Viver Duas Vezes (2019) tem pressa em introduzir seu conflito principal. Desde as primeiras cenas, Emilio (Oscar Martínez) é apresentado como um matemático aposentado, ranzinza e vítima de Alzheimer recentemente diagnosticado. Em paralelo, voltamos a uma cena da adolescência, quando o protagonista encontra uma bela garota durante uma viagem de férias. Ao longo da narrativa, estes serão os únicos elementos de interesse ao filme: a progressão da doença e a memória da garota jamais reencontrada. De repente, o homem apegado à rotina aceita embarcar numa viagem improvável em busca do sonho de sua juventude, enquanto se força a reatar contato com a filha distante e a neta que mal conhecida. Estão dispostas todas as peças do feel good movie aplicado ao road movie e ao drama sobre doenças irreversíveis. O trajeto é concebido para que Emilio encontre o amor, afrouxe suas próprias regras e descubra o afeto familiar. O projeto se constrói como presente generoso a pessoas amarguradas, garantindo que que cada uma termine a aventura com um sorriso no rosto.

Apesar da propensão ao drama açucarado, o tom se equilibra graças aos diálogos deliciosamente irônicos. Emilio não demonstra qualquer forma de piedade em relação a si próprio, e o mesmo vale para a neta, Blanca (Mafalda Carbonell), uma pré-adolescente com deficiência física. Ambos se provocam a partir de suas fraquezas em trocas brutais, algo raro em dramas familiares. Quando Emilio provoca a neta por sua dependência de telefones celulares (“Essas coisas fritam o seu cérebro”), ela responde à altura (“Bom, o seu já está frito”). Quando ambos se colocam em perigo durante a viagem, e precisam justificar seus atos à filha de Emilio, Julia (Inma Cuesta), atribuem a culpa um ao outro (“Ele é o adulto”, “Ela é a saudável”). Ao mesmo tempo, o roteiro lança piadas divertidas sobre o mundo contemporâneo conectado e sobre a pobreza intelectual dos serviços de coaching. A maneira como a família ridiculariza o pai coach (“É uma profissão que ele inventou para não admitir que está desempregado”) atualiza as virtudes atemporais e universais do amor familiar ao individualismo do século XXI.

Os atores estão muito bem em seus papéis. Oscar Martínez se diverte com o olhar sarcástico à velhice, sustentando esta leitura em segundo grau até os quinze minutos finais, quando o filme passa a se levar a sério até demais. As tradicionais cenas relacionadas ao Alzheimer (o esquecimento de fatos importantes do passado, a confusão sobre a identidade de pessoas próximas) estão presentes, ainda que rapidamente, e sem atribuir grande peso emocional à narrativa. O drama passa dois terços de sua jornada tentando minimizar o melodrama em virtude dos quiproquós cômicos da família, buscando uma mulher que sequer sabiam existir. Talvez alguns desconhecimentos do avô idoso sejam exagerados (é sério que ele nunca ouviu falar em Facebook, nem sabia da existência de outros combustíveis além da gasolina?), e algumas soluções narrativas se tornam improváveis (quando o suposto endereço de Margarita revelar ser uma pista falsa, nunca pensam em procurar pela professora aposentada na escola onde lecionou). Há diversos aspectos questionáveis ou mal trabalhados pelo roteiro, a exemplo da crise matrimonial entre Julia e Felipe (Nacho López), ou da descoberta do namorado virtual. Mesmo assim, a diretora Maria Ripoll garante que nenhuma das subtramas retire o protagonismo da jornada íntima de Emilio.

Diante de tantas qualidades humanistas, o resultado se enfraquece em virtude de escolhas imagéticas pouco inspiradas. Três cenas importantes são esticadas pela câmera lenta, diluindo o realismo numa atmosfera próxima do sonho. A ideia de romantismo da diretora coincide com a idealização publicitária de barcos em cenários paradisíacos, praias ensolaradas e encontros ao por do sol – ou seja, sempre que se afasta do drama para investir no romantismo, a diretora apela para lugares comuns da beleza cinematográfica, apostando em efeitos bastante genéricos. Além disso, alguns desfoques seletivos aparentemente acrescentados em pós-produção (a conversa na piscina do hotel) e a metáfora de uma parede da cidade cujos desenhos refletem o estado emocional de Emilio são mal aproveitados pelo roteiro e pela montagem. Os recursos apressados se aliam a outra aceleração, de ordem narrativa: a degradação da memória do protagonista acontece com uma velocidade espantosa, sem que a direção consiga justificar tamanha imersão na fase aguda da doença.

Rumo ao final, Viver Duas Vezes se transforma sensivelmente. Ripoll não acredita que a comédia possa sustentar, por si própria, uma discussão sobre valores familiares e sobre a doença, abraçando o sentimentalismo que vinha evitando até então. O conceito por trás da conclusão, envolvendo o encontro (real ou imaginário) entre Emilio e Margarita possui méritos, no entanto exige alguns contorcionismos que o roteiro e a montagem não conseguem efetuar de maneira orgânica. Os múltiplos saltos temporais transparecem o interesse da cineasta em chegar logo à cena final, mesmo que para isso precise sacrificar parte de sua verossimilhança e lógica. Na verdade, o roteiro aparenta ter sido concebido para o término, como se a ideia final tivesse surgido a princípio, exigindo da roteirista María Mínguez que improvisasse o caminho necessário até atingir a conclusão desejada. Esta construção se torna reflexo de um roteiro forçado, com aparência de ter sido reescrito demais, e excessivamente preocupado em agradar o público através da recompensa emocional. Mesmo assim, os caminhos previsíveis do filme são marcados por alguns choques divertidos entre personagens defendidos honestamente por seus atores.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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