Crítica


5

Leitores


4 votos 8

Onde Assistir

Sinopse

Trinchas comanda um grupo de pichadores na cidade de São Paulo. O time escala edifícios altos para deixar sua marca e provar a coragem de seus membros. Tudo muda quando o moradora da Zona Leste conhece Valéria, uma estudante de arte.

Crítica

Para retratar o universo dos pichadores no centro e nas periferias de São Paulo, o diretor Cláudio Borrelli prioriza a impressão de verdade: ele escolhe um grupo de garotos paulistas sem experiência prévia nas artes dramáticas, para prepará-los então ao trabalho de atores (ao invés de selecionar atores profissionais, e treiná-los para atuarem no papel de garotos da periferia). Então, filma os rapazes escalando janelas, elaborando os planos de pintura no topo dos prédios, reunindo-se em festas pela cidade. As gírias dominam os diálogos, aparentemente estimulados em função do tema previsto para cada cena, mas nunca totalmente escritos e ensaiados. Os protagonistas de Urubus (2021) se mostram confortáveis em suas roupas e casas, em grupo e nas intervenções urbanas. É certo que, na falta de direcionamento rígido do elenco, os rapazes tendem a se repetir nas conversas, ou então aumentar o tom da voz (provável sinal de nervosismo), o que oferece ao resultado um número expressivo de cenas de catarse. No entanto, o cineasta aprecia o estilo de urgência, acompanhando as pichações ao vivo, aproveitando as regras do cinema de ação e de suspense sempre que possível. A sensação de euforia e de vigor se torna tão importante quanto a história por trás do longa-metragem.

Deste modo, adota-se a linguagem que o cinema comercial convencionou atribuir à marginalidade urbana: a câmera tremida e instável, correndo feito louca junto aos personagens, saltando de um rosto para o outro, focando-se e desfocando-se para avisar que não teve tempo para preparação, e privilegiou o movimento. Estão presentes as inevitáveis cenas de bandidos disparando pelas vielas estreitas das favelas para fugir da polícia; do sujeito respeitado ameaçando o outro de morte (“Cuzudo!”, grita inúmeras vezes), enquanto o garoto baba, chora, implora pela sobrevivência; e o confronto entre gangues opostas num beco, com armas e pedaços de madeira, atualizando o imaginário do faroeste à vivência brasileira. A linguagem popularizada em produções como Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007), além de uma dezena de séries brasileiras sobre a criminalidade em comunidades, domina este projeto no qual se busca oferecer certa forma de empolgação à precariedade alheia. Há poucos instantes de ponderação, ócio ou simples afeto entre os garotos que buscam a todo custo escalar o prédio mais alto e efetuar a pichação mais arriscada. Em outras palavras, trata-se de um filme de performance, em oposição a uma apreciação cotidiana da Zona Leste e do centro de São Paulo. O estilo funciona, em partes, no que diz respeito à conquista de um ritmo veloz, visando o público condicionado à sucessão efêmera de informações em redes sociais.

Em contrapartida, Urubus é prejudicado pela dificuldade em trabalhar o tempo - seja nos processos, seja nas elipses. A montagem teima em desenvolver um tema ao longo das cenas. Os dilemas se tornam nucleares: Trinchas (Gustavo Garcez) ouve falar da Bienal de arte, escuta um minuto de um livro a respeito, e decide invadir o espaço para pichar. Na cena seguinte, o ato já ocorre, e ao final, os colegas gritam: “Isso é arte, caralho! Liberdade de expressão!”. O fato será praticamente esquecido a seguir, o que inclui as ambições artísticas do rapaz. A tensa sequência de ameaça culmina na promessa de se pintar um muro em uma hora, caso contrário, os jovens serão mortos. Entretanto, a resolução do conflito é suprimida. Os amigos descem vários andares do prédio por milagre, encontram uma sacola repleta de hambúrgueres por acaso, e fazem de tudo para impedir a entrada do colega em sua casa, por estarem aparentemente escondendo algo lá dentro. Então os longos blacks intervêm na trama, passa-se ao dia seguinte, e esquece-se o conflito anterior. Um personagem trafica pela primeira vez, e na sequência seguinte, é preso por tráfico. De lugar nenhum, surge uma garota desconhecida revelando sua gravidez. As ações são desprovidas de causa e consequência, ou de origem e desenvolvimento. 

Em última instância, estas passagens soam como falhas de montagem e de roteiro. Trata-se de intervenções externas: sem aproveitar os conflitos inerentes ao dia a dia dos protagonistas, o texto se esforça em introduzir dilemas de fora, um por um, para fazer a narrativa avançar. Quando se conclui o imbróglio da Bienal, surge a gangue rival. Diminuída a importância dos adversários malvados, aparece a gravidez, então um acidente, e assim por diante. A edição evita articular estes aspectos em paralelo, nem permite que surtam impacto psicológico nos meninos. O universo carece de elaboração contextual: nenhum dos rapazes trabalha, estuda, nem tem sonhos para o futuro. Valéria é uma estudante que nunca vemos estudando; ela divide apartamento com o pai, mas o sujeito jamais dá as caras; despede-se várias vezes de Trinchas, mas na hora das escaladas, ressurge com a câmera em punho. A garota efetua pouco na trama além de estar presente e participar de cenas de beijos e carícias com Trinchas. O “aprendizado" artístico dele ocorre de maneira tão veloz que soa absurda, enquanto ela adquire apenas culpa e receio por sua participação no ato. A reflexão “pichação é arte?”, prometida a princípio, permanece em suspenso durante toda a narrativa, até um deus ex machina (mais um) surgir da Europa para validar a importância do ocorrido e garantir que o gesto dos amigos possuía, de fato, valor cultural. Os garotos não adquirem tal consciência sozinhos: é preciso vir uma estrangeira, de modo abrupto, para atribuir o status valoroso ao trabalho deles.

O longa-metragem se converte num filme de ação, não apenas pelo ritmo frenético e a câmera tremida, mas também pela crença que testemunhar os fatos com os próprios olhos (as escaladas, as perseguições, as pichações) constitui o melhor que o cinema tem a oferecer. Os protagonistas são pura exterioridade: nunca descobrimos de onde veio o prazer da pichação, que sentimentos possuem ao escalar edifícios, a importância do traço específico, do pertencimento a um grupo ou bairro. Os afetos permanecem em segundo plano: as famílias têm papel ínfimo, e apenas o herói possui um interesse amoroso - por iniciativa dela. Felizmente, Borrelli foge à armadilha de fetichizar a miséria, deixando problemas financeiros e policiais fora de quadro - quando os personagens são detidos, eles simplesmente desaparecem até serem liberados. Entretanto, a tentativa de aproximar o erudito e o popular poderia ir além do encontro musical entre hip hop e ópera, entre o namoro de um rapaz da Zona Leste e uma garota branca e rica, morando na Avenida Paulista. Seria importante perceber de que maneira os desenhos compõem a identidade da cidade, como são percebidos por terceiros, sejam os moradores da periferia distantes da prática da pichação e do grafite, sejam os professores da faculdade de artes. Um universo de discussões se reprime em nome da sensação empolgante de testemunhar garotos escalando dezenas de andares de um arranha-céu no centro de São Paulo.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em novembro de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *