Um Grito de Liberdade

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Sinopse

Uma filha tem vergonha de sua mãe e quer fugir de tudo para viver longe da família. O grito de liberdade da jovem surge com a partida para a faculdade, a partir da qual deixa tudo para trás. Todavia, com o passar do tempo, o desejo de voltar apenas aumenta. Anos depois, será possível recuperar tudo o que se perdeu?

Crítica

A mãe-coragem é um arquétipo bastante recorrente no cinema. Basta uma rápida retrospectiva para encontrarmos diversos tipos de genitoras dispostas a tudo para proteger as suas crias. Da mãe de Bambi, do filme homônimo de 1942, à Manuela de Tudo Sobre Minha Mãe (1999), essas mulheres abraçam a missão de evitar o sofrimento dos amados descendentes. Custe o que custar. Também é muito comum, inclusive no âmbito do melodrama cinematográfico, o personagem do filho que tem vergonha de suas origens. Poderíamos citar como modelos fundamentais as primogênitas de Almas em Suplício (1945) e Imitação da Vida (1959), especialmente a última, cuja curva dramática culmina no aprendizado condicionado pela tragédia transformadora. O que o cineasta turco Mustafa Kotan faz em Um Grito de Liberdade é basicamente entremear os dois padrões numa história que clama por lágrimas recorrentemente. Isso, vide a forma acintosa como demarca reveses, dificuldades, animosidades, tensões e afins. Nazli (Özge Gürel) cresceu numa vila, incomodada pela ausência paterna, mas, sobretudo pós-adolescência, diante da superproteção de sua mãe.

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Ayse (Sumru Yavrucuk) engravidou tarde, talvez por isso querendo cercar sua menina de todos os cuidados possíveis, sendo-lhe um escudo contra os males do mundo. Não tarda para os anseios de emancipação da jovem se chocarem brutalmente com o ímpeto de salvaguarda exagerado da senhora. Todavia, não é o conteúdo que torna Um Grito de Liberdade uma produção de qualidades oscilantes, mas a forma como o cineasta imprime incessantemente ao decurso uma pegada reiterativa e saturada. Se ele não insistisse tanto em reafirmar as características básicas dos personagens, provavelmente a matriarca para lá de resiliente pudesse ser lida melhor como uma espécie de urgência encarnada diante da pequena comunidade tacanha e potencialmente asfixiante. Mas, ao invés disso, ele mostra de jeitos semelhantes que a mulher é uma força da natureza a serviço da integridade filial. Esquematicamente, a testemunhamos afrontando a obscuridade paterna, a falta de recursos do local e remando contra o embaraço que a filha demonstra ao encontrá-la.

Uma vez que Ayse é o pilar desse melodrama que passa do ponto na tentativa de emocionar o espectador, ela acaba magnetizando as atenções. As tentativas de torna-la matizada não funcionam, como nas vezes em que sua empáfia diante das vizinhas pela filha ir à faculdade acabam depondo contra. Principalmente ao construir uma narrativa calcada em eventos simplórios, lançando mão de ações e reações diretamente correspondentes, Mustafa Kotan deixa os personagens a mercê de tantos julgamentos fáceis, além de torná-los superficiais. O pai, por exemplo, ganha tintas somente após ausentar-se, ressignificado pelas lembranças da esposa que não chega a afrontar em vida a sua brutalidade doméstica por falta de alternativas. A impossibilidade é outro potencial trágico negligenciado. O roteiro não permite que cheguemos a certas conclusões, evitando nutrir as entrelinhas ou algo que o valha. Tudo é mecanicamente verbalizado. Nesse sentido, a seara imagética vira um apêndice do texto. De um ponto em diante, as desgraças se acumulam, ostentando esse apelo sentimentalista.

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Sumru Yavrucuk tem um desempenho destacável em Um Grito de Liberdade. Ayse é histriônica, troca os pés pelas mãos, mas suas intenções são as melhores. É aquele tipo de personagem cativante pelo tamanho do coração. Fosse menos tolhida pela supracitada insistência diretiva em mostrar novamente determinadas condutas, ela seguramente poderia alcançar timbres passíveis de emocionar genuinamente. O choque entre a superproteção materna e a vergonha filial, cujos efeitos tenderiam a ser devastadores, acabam rapidamente caindo num espaço comum, sobretudo porque o realizador tampouco fornece terreno propício para Özge Gürel expandir o registro estereotipado ao qual se filia propositalmente. Assim sendo, o maior problema de Um Grito de Liberdade é essa incapacidade de modular os principais elementos do gênero que já nos apresentou obras de conteúdo similar, porém com resultados bem mais potentes. Mustafa Kotan apenas sublinha o que as circunstâncias naturalmente trazem, além de demonstrar imperícia no equilíbrio de componentes dramáticos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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