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Sinopse

Em Malês, durante seu casamento, dois jovens são arrancados de sua terra natal na África e escravizados no Brasil. Separados pelo destino cruel, ambos lutam para sobreviver e se reencontrar, enquanto se veem envolvidos na maior insurreição de escravizados da história do Brasil: a Revolta dos Malês, em 1835. Exibido no Festival do Rio 2024.

Crítica

Há muitos anos o ator Antonio Pitanga tenta tirar do papel a sua segunda direção de longas-metragens, um filme sobre a Revolta dos Malês, considerado o maior levante de escravizados da história do Brasil. No entanto, os desafios são sempre enormes, mesmo para uma verdadeira sumidade como Pitanga, seguramente um dos maiores nomes do nosso cinema. Com roteiro de Manuela Dias, Malês finalmente chega às telonas depois de uma série de contratempos que ameaçaram a sua existência. Com uma estrutura narrativa fragmentada, diversos personagens com fala e a aposta numa reconstituição de época desafiadora, a produção parte da violência que interrompe o começo de uma vida matrimonial. Noivo e noiva são sequestrados em plena cerimônia de casamento para serem trazidos ao Brasil como força de trabalho. Tendo em vista essa ênfase inicial, é de se esperar que Pitanga desenvolva os contextos antecedentes à revolta a partir dessa separação das pessoas que se amam. Porém, isso é parcialmente verdade. O homem sequestrado em sua terra de origem fala apenas esporadicamente da falta sentida da esposa e esta demora um pouco para retornar à cena. O recorte aqui é muito mais amplo, prima pelo destaque de situações de violência e desmando das pessoas brancas que oprimem os traficados para o Brasil. Há muita gente e tramas para serem contempladas nesse filme disperso.

Ao longo do filme, há várias interrupções abruptas de subtramas em prol da inclusão de outros elementos. E essa pressa impacta negativamente na construção dos dramas. Há alguns dias, Pitanga anunciou que haverá uma série de TV derivada, ou seja, não é gratuita a sensação de que esse corte abrevia algo maior para caber numa metragem de cinema. Tentando abraçar a tarefa de contar os inúmeros causos do levante dos negros muçulmanos trazidos ao Brasil do noroeste da África, o cineasta de segunda viagem pulveriza a nossa atenção e cria uma polifonia com várias vozes importantes para chegar até a revolta no clímax. O próprio Pitanga interpreta um personagem interessante, Pacífico, o escravizado septuagenário que acaba preso por conta das dívidas de um patrão carrasco irredutível quanto a não vende-lo (mesmo que esteja atolado em débitos para pagamento próximo). Ele é a voz do equilíbrio num caldeirão de emoções fervilhantes prestes a ser revirado. Malês tem como um de seus principais problemas a falta de carga dramática da trama episódica. Por exemplo, há toda uma expectativa sobre o simbolismo da construção de uma mesquita para o exercício da fé muçulmana na Bahia de todos os santos. No entanto, quando um militar ordena, de arma em punho, que os frequentadores destruam imediatamente o tempo, a cena não dura tempo suficiente para a brutalidade ser absorvida como tal. Do mesmo jeito, as frustrações e as vitórias dos personagens são pouco valorizadas.

Malês é feito de planos médios e fechados, nisso em muito se assemelhando a um programa televisivo do ponto de vista visual. Os personagens entram em cena com a mesma velocidade com que saem e a direção de arte nem sempre consegue vencer os desafios impostos pela falta de condições ideais para criar algo visualmente suntuoso. Além disso, são questionáveis certas escolhas de cunho dramatúrgico, como as construções apressadas das especificidades que vão moldando o crescendo de indignações da comunidade escravizada que culmina com a Revolta dos Malês. Pitanga coloca na boca de seus personagens frases de efeito e empoderamento, celebrando assim a força da população disposta às últimas consequências para garantir a sua liberdade de ir e vir.  Voltando às pessoas, Camila Pitanga poderia ganhar mais tempo para desenvolver a sua personagem, a mulher disposta a negociar com o inimigo se isso garantir a segurança do marido. Enquanto isso, Kiko Mascarenhas e Patrícia Pillar existem no filme apenas para reforçar a atitude dos brancos diante da vulnerabilidade social dos negros. Pitanga estende um pouco demais os momentos e tortura física e psicológica, não criando instantes equivalentes, em duração e impacto emocional, que deem conta da valentia do povo indisposto com a servidão. Do ponto de vista histórico, trata-se de um documento pouco incisivo e até cansativo.

De todos os personagens do filme, aquele que mais se destaca é Ahuna (Rodrigo dos Santos), um dos líderes do levante que entraria para a História. Ele é quem melhor representa a coragem dos malês para ir às últimas consequência a fim de garantir a sua liberdade, inclusive a religiosa. Grande parte de Malês é a preparação à guerra, o desenvolvimento do contexto de maus tratos e desrespeito que levaram os escravizados a conspirarem contra a polícia e seus proprietários. Antonio Pitanga merece as nossas palmas por, aos 85 anos de idade, permanecer tão combativo. É evidente que sua segunda incursão pela direção de longas parte de uma ode contundente e clara à comunidade negra que resgata algumas de suas histórias fundamentais. No entanto, as subtramas do filme são frouxas, as cenas têm pouca criatividade visual e a linguagem não faz jus à importância dessa representação que coloca em questão a natureza estrutural do racismo. E especialmente quando é preciso mostrar os malês rechaçados pela guarda imperial, ou seja, na guerra em si, a fotografia escura de Pedro Farkas cria um emaranhado de borrões pouco expressivos que denotam muito mais falta de habilidade para filmar batalhas campais do que a intencionalidade de retratos alegóricos dos personagens. No terço derradeiro do filme, a pressa para acabar é tamanha que pouca coisa funciona, da ação em si até a bonita promessa de futuro.

Filme visto no 26º Festival do Rio em outubro de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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