Crítica
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Sinopse
Mulher está no limite da desmotivação com sua rotina monótona e enfadonha. Todos os dias ela ajuda sua mãe, que está sofrendo por ter perdido sua cadela recentemente, com as tarefas domésticas diárias. Certa vez, a Mulher descobre que está com uma estranha doença que a faz questionar seus hábitos: seus órgãos estão desaparecendo. A exagerada disposição do médico com o assunto a afasta de realizar algum tratamento. Esse acontecimento coincide com a ida de uma nova moradora para o prédio da Mulher. Juntas, elas estabelecem uma íntima relação, o que leva Mulher a ficar dividida entre essa amizade e sua mãe.
Crítica
Quem é essa mulher que está se perdendo em si mesma? A protagonista de Um e Oitenta e Seis Avos, longa de estreia do realizador carioca Felipe Leibold, está se vendo diante de uma situação bastante incomum: seu corpo está desaparecendo. Os médicos, incrédulos, não encontram explicação. O mais curioso? As ausências começam a ser sentidas de dentro para fora. Não é a mão ou a orelha que deixaram de existir. São seus rins, pulmões e coração. Exames comprovam: não há nada no lugar onde os órgãos deveriam ser encontrados. Mas seria o vazio que sente tão facilmente explicável? Como se percebe, o argumento é interessante. A se lamentar, no entanto, a inabilidade do realizador em conduzir a sua realização, algo que se percebe em grande parte do projeto. A irregularidade é a marca mais notória em cena, e entre alguns (poucos) acertos, são as iniciativas dignas de atenção as que mais sofrem diante da ineficácia do conjunto em alcançá-las.
Leibold começa seu filme quase como num pesadelo. Uma série de imagens aleatórias são dispostas em cena. O que elas podem dizer? Muito, ou talvez nada. Há a constante sensação de que algo muito bom está prestes a surgir a qualquer momento durante o desenrolar de Um e Oitenta e Seis Avos. No entanto, esse pressentimento nunca chega a se confirmar. A frustração, como se pode imaginar, é inevitável. O curioso é se dar conta de que o mesmo sentimento acontece também no lado de lá da tela. A Mulher (Talita Feuser) dá a entender-se plena, mesmo, apenas quando pinta. Diante da tela branca, é quando se sente livre para preenchê-la com tintas das mais diversas cores, envolvendo pinceis, mãos, dedos e pés. Rosto e corpo se unem ao processo de criação. Ali ela deixa de lado o ser entediante visto no demais do tempo, como se essa fosse uma capa da qual pode, felizmente, se afastar. Mas esses são meros instantes, segundos fugazes que podem durar horas, ainda que encontrem, inevitavelmente, um fim. Mesmo que seja pela batida resoluta do vizinho.
Estará na casa ao lado – não daquele que reclama do barulho, mas da que se oferece para dividir uma lasanha congelada – a oportunidade de redenção. A Vizinha (Ana Luiza Lamoglia) é o seu oposto – e, talvez por isso mesmo, a complete com tamanha desenvoltura. Há ainda duas outras figuras femininas do caminho da Mulher. Uma é a mãe (a veterana Débora Duarte, que volta ao cinema mais de três décadas após seu longa anterior), que sofre pela solidão – mas, ao contrário da filha, não tem medo de assumir essa dor. Ela lamenta a cadela que morreu e enquanto se atira na vodca e na geleia de laranja (“com pedaços da fruta, por favor”), não perde uma oportunidade para fazer que a filha acorde. As verdades são jogadas na cara das mais jovem. Mas essa tem o seu próprio caminho a trilhar até se ver pronta a lidar com todo esse peso.
Por fim, é quando surge Anastácia (Luiz Guilherme), vidente que enxerga o íntimo de cada um disposto a se colocar-se diante dela. E se essa já se apresenta como Fogo, e o fato da Mulher ser Água parece ser inquestionável, que dúvida resta sobre a Vizinha ser Ar? Os elementos vão se juntando, cada um ocupando seu lugar de direito. Mas no âmago da protagonista, o que pode ser colocado? “Você deveria por uma flor no lugar no coração”, afirma a amiga, prestes a virar algo mais que isso. A ideia assusta – “não quero ser aberta” – até ela perceber que talvez seja justamente isso o que falta. Mas como dar esse passo? E quem estará ao seu lado? Deixar para trás todos os muros construídos com o passar dos anos não é tão fácil. Mas seguir cultivando-os não é mais uma possibilidade. Entre o viver e o sobreviver, há mais do que apenas algumas letras.
Como pode ser depreendido, qualquer um que obliterar as carências e decidir não levar em consideração todos os visíveis problemas aqui reunidos poderá encontrar uma obra digna de um interesse mais profundo. No entanto, esses ruídos são muitos – e pior, são também constantes. Da falta de um maior apuro estético a uma aparente instabilidade técnica, há também que se observar o quanto destoam entre si os membros do elenco, que reúne desde nomes consagrados até novatos que parecem ter descoberto ontem uma vontade imperativa de se dedicar à atuação – mesmo sem nenhum preparo prévio – Um e Oitenta e Seis Avos é uma demonstração de força que compensa em certa medida os dedicados que persistirem e até a sua abrupta conclusão conseguirem resistir. O que parece óbvio, no entanto, é que esse conjunto será formado por um grupo reduzido, uma vez que há muito com o que se distrair, a grande maioria mais afastando do que oferecendo ganchos de aproximação. Faltou lapidação, o que termina por determinar a diferença exata entre o sim e o não.
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