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Sinopse
Um Corpo para Habitar conta a história de Fakir Musafar (1930-2018) é o ponto de partida e chegada para esta exploração de filosofias e práticas de vida e de arte contra-sistêmicas, onde o corpo é, ao mesmo tempo, a matéria-prima e o espaço de contestação. Documentário.
Crítica
Qual o limite da dor? Ou, melhor ainda, o que o ser humano estaria disposto a provocar em si mesmo em busca de um gozo, de um prazer, de um êxtase em nenhum outro lugar possível de ser experimentado, sentido, identificado? Esta talvez seja a questão-motora por trás de Um Corpo Para Habitar, longa dirigido por Angelo Madsen Minax. Em seu site pessoal na internet, o cineasta se descreve como “diretor de cinema, artista visual, músico e performer, conhecido por seus filmes documentários e experimentais”. Ou seja, alguém obviamente não ligado ao convencional e disposto e romper barreiras em busca de um resultado além do lugar-comum. Neste seu projeto mais recente, se debruça sobre os feitos e o pioneirismo de alguém que da mesma forma se revelou insatisfeito com o olhar tradicional do uso não dos elementos e ferramentas ao alcance de todos, mas daquilo que carrega de mais íntimo e pessoal: sua própria pele. O resultado está distante de ser aprazível, é de difícil aproximação, mas na mesma medida impressiona pelo que revela de assustador visto o grau de normalidade que tais explorações podem se mostrar frente a um espírito inquieto e investigador.
O homem capaz de provocar esse mergulho se chama Roland Edmund Loomis, mais conhecido como Fakir Musafar. Ainda na adolescência, deu um jeito de garantir privacidade em relação aos demais familiares e, sozinho, passou a explorar a transformação do próprio corpo por meio de práticas que décadas depois são vistas não mais como a aberração de um século atrás, mas como algo conhecido e até mesmo usual. Se não corriqueiro, ao menos de fácil identificação. Fala-se daquilo que ficou conhecido como body art, por meio de piercing, tatuagens e outras práticas talvez um pouco mais transgressoras, ligadas ao prazer provocado por meio da dor, do sexo livre e BDSM (bondage, disciplina, sadismo, masoquismo). Loomis se encantava com as fotos de povos indígenas oriundos de lugares exóticos vistas nas páginas da revista National Geographic, de pescoços repletos de argolas, de lábios e lóbulos auriculares alargados, do uso de extensores em órgãos sexuais e até mesmo nos demais espaços do corpo. Essa fascinação levou às experimentações em si mesmo, agregando espartilhos e táticas que mais se assemelham ao uso da tortura vista em registros da Idade Média. Nele, no entanto, fazia parte do seu livre arbítrio, autoimposto repetidas vezes. O que descobriu com o tempo é que não estava sozinho nesses interesses tão particulares. E uma comunidade ao seu redor se formou.
Minax é austero ao se apropriar da vida de Loomis. O resultado é um filme que pode se mostrar perturbador por meio de suas imagens, mas cujo impacto logo se dilui, aproximando o espectador de algo mais digno de nota do que verdadeiramente problemático. O conceito de liberdade está fortemente atrelado à condição de se fazer o que quiser, com quem quiser, e como quiser, sem impor nada contra a vontade de ninguém. A violência está mais nas reações dos outros, intolerantes e catequizadores, do que nestes que praticam e exercem seus interessem visando apenas sua satisfação e daqueles a eles alinhados, sem que tal visão seja exibida de forma reguladora aos demais. O diretor, assim, se mostra focado no passar dos anos e dos costumes, em como o mundo se afirmava disposto a encarar alguém como Fakir Musafar – que se tornou conhecido por ter sido um dos fundados do movimento primitivo moderno – mais como um artista e menos como alguém a ser condenado. Ele cumpre a tarefa de resgatar a história e os feitos de um homem que, a despeito de qualquer interpretação mais rasa, deixou um legado. Se válido ou não, isso está mais na responsabilidade dos outros do que neste cujos feitos o tornaram digno de tal memória.
Por demais domesticado para um discurso cujo conteúdo se mostra de partida potencialmente explosivo, Um Corpo Para Habitar se confirma ocupado com pontuações e registros, deixando leituras e desdobramentos analíticos a cargo da audiência. Revelando valor enquanto anotação acadêmica e até mesmo como curiosidade de almanaque, falha por outro lado em investigar inquietações, em explorar possíveis motivações e em buscar seguidores atuais, que poderiam propor reflexos modernos e surgidos por meio de outros contextos. Sexo, nudez, agressões corporais, posturas libertárias e modificações estéticas compõem a narrativa, mas nada capaz de causar um impacto por demais duradouro e perturbador. O olhar se acostuma com os excessos. Válido, portanto, seria ir além desse choque inicial. Um caminho que aqui até chega a ser desenhado, mas nunca percorrido a contento.
Filme visto no 14º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2025


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