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Sinopse

Uma jovem interiorana sonha em estudar moda em Paris, na França. Mas, para ser aceita na escola precisa de uma avaliação altíssima. A fim de ganhar rapidamente experiência, ela aproveita uma viagem para tentar fazer parte do time de costureiras da escola de samba Portela. Ao se apaixonar por um escultor, ela descobre outra vida.

Crítica

Quatro escritoras de grande apelo entre o público jovem se reuniram para, juntas, darem origem a um único livro, que foi batizado de Um Ano Inesquecível. Cada uma delas ficou responsável por um conto específico, e o que deveria diferenciá-los num primeiro instante seria a época na qual suas histórias seriam ambientadas. Assim, Paula Pimenta (autora do romance que resultou no filme Cinderela Pop, 2019), Bruna Vieira e Babi Dewet se uniram a Thalita Rebouças, responsável pela trama que ganha formato em Um Ano Inesquecível: Verão. Essa, supostamente a mais experimente das quatro – ao menos em relação a sua filmografia – foi escolhida para abrir a série de longas (os próximos – Outono, Inverno e Primavera, também serão adaptados e exibidos com exclusividade na plataforma de streaming da Prime Video). E quem conhece as transposições anteriores de sua obra para o cinema, sabe o que irá encontrar por aqui: dramas que duram o voo da borboleta e histórias de amor que não se esforçam em esconder sua previsibilidade. Porém, com a direção de Cris D’Amato, um problema se soma: uma evidente ausência de consciência social, disfarçada, no entanto, de (mais) um constrangedor caso do “branco salvador”, ou seja, transfere-se o protagonismo de quem era de direito para colocar personagens aleatórios no centro das atenções. Como se esses já não estivessem acostumados com tamanha exposição.

Há dois grandes eventos que mobilizam interesses de norte a sul do país durante a estação mais quente do ano: férias na praia e carnaval. Inha (Lívia Inhudes, de Skull: A Máscara de Anhangá, 2020) não está interessada nem por um, muito menos pelo outro. Seu único objetivo é ser aprovada com uma bolsa de estudos para uma escola de moda em Paris, na França, e assim deixar a pequena cidade no interior do Rio de Janeiro onde mora com o pai, o irmão e avó. Porém, realizar esse sonho de virar estilista tem se revelando mais complicado do que poderia imaginar. E se as oportunidades não se apresentam em seu caminho, decide ir atrás dessas. Uma delas se mostra possível quando fica sabendo, por uma reportagem de televisão, que Carrie Catherine (Mariana Rios, de Órfãos do Eldorado, 2015), uma fashionista reconhecida internacionalmente, será a responsável pelos figurinos da escola de samba da Portela. Tudo o que precisa, portanto, é ir até ela e lhe pedir por uma carta de recomendação. Algo simples, mas nada fácil.

Apesar de contar com uma mulher na direção, de partir de um enredo criado por uma autora e de ter uma garota à frente dos acontecimentos, o roteiro de Um Ano Inesquecível: Verão ficou a cargo de dois homens: Bruno Garotti e Sylvio Gonçalves. Esse viés masculino em mais de uma vez acaba por se sobressair, prejudicando o andar dos acontecimentos. Afinal, ao invés de se ocupar com a jornada de Inha, as relações que vai estabelecendo pelo caminho e as consequências de suas atitudes, dramas paralelos, como o drama político do pai (André Mattos, como de praxe, excessivo), a descoberta da orientação sexual do irmão (Diego Martins, ator que já ganhou concurso de drag queen e vive um garçom afeminado na novela Terra e Paixão, 2023) ou o envolvimento forçado do carnavalesco (e galã) Guima (Micael Borges, que estreou em Cidade de Deus, 2002) com a vilã da história.

Mas se por um lado recorre-se insistentemente aos personagens masculinos para dar sentido à busca da jovem, mais constrangedor se mostra o cenário quando percebe-se que se trata do empenho de uma garota branca, de classe média, que usa recursos públicos como se fossem seus (o carro da prefeitura que pega para ir à capital e ainda é multada) e com ambições para estudar no exterior – enfim, uma privilegiada que, no entanto, se apresenta como sofredora, sem ciência de sua condição – que acaba fazendo uso de uma festa notoriamente popular (e de fortes laços com a cultura afrodescendente) para seus próprios interesses, utilizando cada um dos envolvidos com a atividade comunitária como meios para um fim que diz respeito apenas a ela, e a mais ninguém. As figuras negras, por exemplo, que na vida real são maioria neste contexto, aqui se mostram como não mais do que meros coadjuvantes, sem vontade ou interesses particulares, servindo apenas de escada para a protagonista (ou para sua melhor amiga loira, que – olha só que surpresa! – se revela cantora e sambista). A falta de cuidado com quem realmente se compromete e se dedica a fazer dessa a maior festa do país não tem como ser ignorado, por mais se possa alegar ser essa não mais do que uma comédia romântica.

Assim, Cris D’Amato opta por fechar os olhos para os elementos que poderiam conferir algum tipo de autenticidade ou verossimilhança ao argumento explorado, adotando um tom fabular que talvez encontrasse espaço vinte ou trinta anos atrás, mas soa irresponsável e inadequado em meados do século XXI. Ainda que aborde temas potencialmente polêmicos, como preconceito, homofobia, assédio e roubo de ideias em ambiente profissional, Um Ano Inesquecível: Verão em nenhum momento se mostra maduro o suficiente para enfrentar tais questões de frente, preferindo não mais do que citá-las para, uma vez enumeradas, contorná-las em seguida, como se o trabalho fosse apenas esse: apontar sem debater. E se Lívia Inhudes não faz de sua personagem um tipo ainda mais descartável, é mérito da atriz, e não do direcionamento recebido ou do papel que tinha em mãos. Era para ser o início de uma temporada memorável, mas tudo o que conseguiu foi preparar o terreno para chuvas e trovoadas. E salve-se quem puder.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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