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Sinopse

João procura por uma nordestina para enfrentar um usurpador de terras, o homem que acabou com sua família.  

Crítica

Última Cidade (2020) poderia ser descrito como uma distopia de cangaço, ou talvez um faroeste futurista. Vestido com o típico chapéu de cangaceiro, peixeira na mão, João (Júlio Adrião) aparenta estar perseguindo inimigos no sertão, porém o vemos ao lado de uma autoestrada, perto de usinas. Estamos em tempos contemporâneos, quando este anti-herói busca reparação contra os homens que tomaram suas terras. Em seu percurso rumo à “última cidade”, uma Fortaleza pós-apocalíptica e semiabandonada, atravessa estradas vazias, avenidas desertas, cruza com bandidos e marginais de todos os tipos. Há certa conexão com um Mad Max brasileiro, e ainda com Dom Quixote e Sancho Pança lutando (quase literalmente) contra moinhos de vento. O diretor Victor Furtado articula temporalidades e espaços variáveis: o local se parece tanto com nossas metrópoles contemporâneas quanto com um cenário fantástico, entre o presente e o futuro. O cavaleiro solitário, defendendo uma família apenas mencionada em nome de um povo desconhecido, luta contra o poder invisível. As forças dominantes se encontram distantes do enquadramento, a exemplo de um pesadelo kafkiano – atingimos a época em que as estruturas de opressão se reproduzem sozinhas.

O filme assume um teor simbólico, muito distante do naturalismo esperado destes cenários. A estética investe numa condução delirante, privilegiando os processos psicológicos de João em detrimento das convenções dos gêneros. Sem perder de vista a trajetória do cavaleiro rumo à cidade, imagina sequências dos personagens lutando sozinhos nas dunas, revoltando-se contra os céus ou mergulhando nas entranhas de edifícios em processo de demolição. A marginalidade se converte em posição de abandono e invisibilidade, ao invés de confronto diário com os privilegiados. João representa a periferia buscando o centro, encarnando a luta das pessoas sem moradia fixa, dos estrangeiros (Tahiel) e migrantes locais. Trata-se do Brasil “profundo” combatendo o Brazil das megacorporações, brilhantemente representadas por um prédio de aço e vidro, vazio e inútil (o Castelo desse Josef K.), onde o cavaleiro é esperado por um empresário de rosto oculto. Kleber Mendonça Filho (em Aquarius, 2016), Cláudio Assis (em Piedade, 2019) e Furtado encontram nos arranha-céus, na especulação imobiliária e na concentração de renda (o navio chamado “Capital”, tão perto e tão longe de João) a metáfora máxima do enfrentamento social.

Última Cidade constitui uma bela fábula sobre a condição humana. Atingir seu destino, para João, equivale a encontrar a morte: ele se encaminha para o duelo final típico do faroeste, traduzido numa das cenas mais potentes do filme. Rompendo expectativas cena após cena, o roteiro acolhe em meio à ficção algumas brechas documentais, expondo decepções a respeito da promessa de prosperidade dos centros urbanos. Neste instante, os expressivos protagonistas se calam, assumem a postura de espectadores e admiram as falas alheias, em planos-sequência que remetem aos trabalhos de Affonso Uchôa e Pedro Costa. Além disso, o projeto oferece uma sequência preciosa de luta do real contra o simulacro, ou da intimidade contra o espetáculo, quando João e Tahiel (Hector Briones) confrontam-se a uma tela pixelizada exibindo fogos de artifício. Em algum lugar distante do passado, havia festa e comemoração, convertidos em espectros. Os protagonistas chegam ao limite de se observarem refletidos no telão. O personagem torna-se imagem de si mesmo, decalque do decalque, rumo à virtualidade e ao distanciamento do real.

Em registro tão coeso quanto ousado, a estética acompanha o delírio do protagonista. A trilha sonora operística chama atenção à própria artificialidade o tempo inteiro, enquanto a montagem se dispersa, acrescentando e eliminando personagens abruptamente, saltando de um espaço ao outro numa trucagem lúdica. Uma jaqueta verde brilhando nas dunas, os personagens queer no bar do fim do mundo, as roupas kitsch das atendentes, a casa-cenário dos moradores em situação de rua posicionam todos os personagens em pé de igualdade: eles possuem o mesmo valor dentro desta jornada. Furtado transforma a morte na assimilação das normas: pior do que desaparecer seria ser fagocitado pelo inimigo, incorporado à função de reprodutor do capital. Em última instância, a morte do indivíduo se encontraria na submissão ao status quo. Assim, o diretor propõe uma estética política: sem verbalizar bandeiras nem simplificar processos sociais, cria um dispositivo em que a linguagem carrega forte conteúdo em si. O cinema político vai muito além dos projetos em que o ativismo constitui o tema explícito: ele precisa impregnar a linguagem e a maneira de enxergar o mundo. Cada composição de atores, enquadramento e corte da montagem de Última Cidade reflete um afrontamento das normas.

Nestes OVNIs cinematográficos tão únicos e ao mesmo tempo embebidos de referências encontram-se as propostas mais vigorosas de um cinema herdeiro do Cinema Novo e do Cinema Marginal, porém desprovido de saudosismo. Furtado, João Dumans, Guto Parente, Adirley Queirós e outros jovens diretores (nos quais se inclui Pedro Diógenes, colaborador desta obra) buscam compreender as configurações específicas da marginalidade do século XXI. A dicotomia campo-cidade se transformou, e o conceito de exclusão social possui novos contornos sob o governo Bolsonaro, praticante de uma política de extermínio das diferenças. O excelente Júlio Adrião (de Sertânia, 2020, Em Pedaços, 2020) se torna o símbolo de um cinema autoral que abandona o realismo rumo a configurações fabulares, capazes de abarcar tamanha complexidade sociopolítica. O “cinema de gênero”, cada vez mais “impuro”, se converte na ferramenta ideal para uma nova safra de diretores expressar sua indignação com um sistema normalizado. O estranhamento diante do real visa retirar o espectador de seu torpor, propondo que observe o mundo sob outra perspectiva. A cidade do filme consiste numa paisagem fantástica, e também no retrato mais próximo do Brasil pauperizado, polarizado, apropriado por fanáticos, religiosos e militares.

Filme visto no 30º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em dezembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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