Crítica


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Sinopse

Evelyn é uma imigrante chinesa que passa por dificuldades. Em crise matrimonial, vivendo uma turbulência com a filha e prestes ainda tendo que lidar com as dificuldades de seu negócio, ela é chamada a uma aventura multiversal.

Crítica

Os quadrinistas/roteiristas da Marvel não inventaram o conceito de Multiverso, mas boa parte do público consumidor de quadrinhos/cinema já associa diretamente essa teoria das realidades paralelas à Casa das Ideias – mesmo que ela ainda engatinhe na atual fase do Universo Audiovisual Marvel. Mas, aí vem algo como Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo e (ainda bem) chacoalha um pouco essas “verdades” cunhadas pelo marketing. De certa forma, o filme propõe uma rachadura nessa ameaça de hegemonia patrocinada pelas campanhas publicitárias caríssimas. O longa-metragem dirigido por Dan Kwan e Daniel Scheinert mostra que as tais hipóteses científicas sobre existências alternativas podem ser utilizadas de formas diversas, não apenas como subterfúgios para mortos “ressuscitarem” ou outras versões de super-heróis serem recebidas com os gritos de fãs entusiasmados. A sua protagonista é Evelyn (Michelle Yeoh), imigrante chinesa residente nos Estados Unidos que vive uma rotina apática co-administrando (com o marido) uma lavanderia que anda mal das pernas. E o que acontece com ela é típico da Jornada do Herói, do chamado Monomito, ou seja, de uma dinâmica quase tão velha quanto andar para frente. No entanto, o que destaca esse filme não é a reutilização do modelo, mas de que maneira essa atitude criativa é coloca a serviço de um drama familiar emoldurado pela ficção científica. Porém, antes de as tensões domésticas serem encorpadas, a viagem pode ser comparada a uma montanha russa de sons, imagens e bizarrices incessantes. Um looping de cores, formas e episódios inusitados.

Evelyn cabe perfeitamente na trajetória percorrida por personagens tão díspares quanto o Neo da saga Matrix (1999), o Frodo da saga O Senhor dos Anéis e até mesmo Jesus Cristo, símbolo máximo do cristianismo. Ela é uma mulher comum que, de uma hora para outra, descobre que tem uma capacidade sem igual. Depois do breve período de incredulidade e negação desse destino que a chama, ela é praticamente sugada para a aventura, na qual recebe o auxílio de um mentor que a guia pelos caminhos do desconhecido. E aí até cumprir integralmente os 12 Estágios da Jornada do Herói, tal como proposto pelo escritor e mitologista Joseph Campbell sobre os itinerários cíclicos dos mitos. Então, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo cruza Multiverso e Jornada do Herói para construir uma trama em que os laços familiares de sintomas comuns devem ser reparados durante uma aventura constantemente orientada pelo incomum. Conduzida por uma versão alternativa do marido, a protagonista começa a se familiarizar com a fragmentação da realidade, descobrindo, inclusive, sobre a possibilidade de acessar outras Evelyns para assimilar suas habilidades a serem reutilizadas em combate. Dan Kwan e Daniel Scheinert (também responsáveis pelo roteiro) talvez não precisassem tornar certos momentos da trama tão abertamente didáticos, com personagens detalhando (a Evelyn e a nós) o funcionamento do Multiverso enquanto se defendem das ameaças crescentes da grande vilã. No entanto, mesmo essa exposição meramente explicativa e direta não chega a exceder os limites do aceitável.

O que diferencia Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo no panorama das produções que atualmente se valem da teoria do Multiverso é ser movido por uma soma excelente de ação desenfreada e non sense. A improbabilidade é utilizada de maneira bastante criativa dentro da trama, com os personagens rompendo expectativas para acessar os poderes de suas versões multiversais. Na saga Matrix, Neo e companhia precisavam de um telefone para sair da Matriz. Já aqui as pessoas têm de fazer algo absurdo para conseguir o necessário acesso remoto. A partir dessa “desculpa”, Dan Kwan e Daniel Scheinert constroem situações com alto potencial cômico, vide quando um dos vilões literalmente senta num troféu com sugestivo formato fálico. A luta dele com algo visivelmente enfiado no traseiro é algo capaz de quebrar qualquer casca de sisudez, mas sem com isso transformar a cena num escracho completo. Nela, a ação continua sendo importante e o perigo à vida da protagonista é mantido. Estamos diante de um filme que utiliza conscientemente a exacerbação: de imagens, de sons, de bizarrices, de estilos combinados, de truques de transição, etc. O resultado é uma experiência que beira o lisérgico em vários momentos, méritos também da excelente montagem assinada por Paul Rogers, peça imprescindível para imprimir essa sensação de voltagem caótica. E ainda temos a heroína credenciada a salvar o dia pelo acúmulo de erros e frustrações, alguém sem virtudes incontestáveis que ocupa um lugar de destaque no grande mistério multiversal por conta de fracassos, falhas e várias escolhas erradas.

Claro que de tanto quebrar expectativas, a expectativa passa a ser a quebra da expectativa. Mas, Dan Kwan e Daniel Scheinert lidam bem com esse inevitável círculo vicioso com ares de paradoxo. Os dois oferecem um repertório vasto de ações/reviravoltas e de cenas divertidas, vide a luta com a pochete ou mesmo a consciência do ridículo instaurado numa conversa pseudo-profunda entre as pedras que miram o horizonte. O incomum permanece balizando o comum. Como em boa parte das ficções científicas mais respeitadas do cinema, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo elabora o extraordinário como um subterfúgio para investigar o ordinário, neste caso as tensões geracionais na família de chineses que migrou aos Estados Unidos. Em meio às citações espertas a filmes como Kill Bill: Volume 2 (2004), 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968) e Amor à Flor da Pele (2000), são revelados mágoas existentes, resquícios de cobranças/negligências e pais refratários aos desejos íntimos dos filhos. E para isso funcionar é fundamental a versatilidade do elenco, adequado tanto às predominantes cenas non sense quanto às de ação e aos instantes dramáticos. Michelle Yeoh lidera esse time, seguida de perto pela talentosa Stephanie Hsu – um dos destaques das recentes temporadas da série Maravilhosa Sra. Maisel (2017-) –, que aqui vive a filha estilhaçada/fragmentada pela indiferença materna. Vale destacar, ainda, a criatividade dos figurinos assinados por Shirley Kurata, aspecto crucial ao visual desse filme que nos oferece alternativas estimulantes ao que a Marvel tem feito com seus Multiversos comportados.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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