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Sinopse

Ex-policial, preso por espancar seu superior envolvido com corrupção, Spenser pensa em deixar sua cidade natal assim que sai da cadeia. Todavia, o cheiro de injustiça pairando no ar é suficiente para que ele arrisque a própria pele em função da preservação de um senso de correção que guia todos os seus passos.

Crítica

O protagonista de Troco em Dobro é um ex-policial de conduta ilibada, daquele tipo de cidadão modelo que não exibe falhas morais, por mais que sinalize repetidamente, com doses de resignação, o fato de “ter muitos defeitos”. Aliás, neste filme do cineasta Peter Berg há vários elementos e constatações verbalizados que não encontram ressonância nas ações. Senão vejamos. Spenser (Mark Wahlberg) pagou uma dívida com a sociedade na prisão, isso após ter espancado seu superior na força policial da cidade de Boston. Todavia, ainda que mencione ter se calejado no cárcere, num espaço em que supostamente sofria a perseguição natural por ter sido agente da lei, não se nota qualquer mudança entre o homem que entrou e o que saiu do xilindró. Essa utilização do texto meramente como muleta à encenação é uma constante na trama empenhada em valorizar o bom-mocismo de um protagonista inconsistente como todos os demais personagens que o circundam.

Ainda que seja narrada de forma competente, que possua bom ritmo e um percurso relativamente curioso – especialmente no que diz respeito às (superficiais) maquinações que colocam no mesmo patamar policiais, bandidos e empresários inescrupulosos –, Troco em Dobro perde substância justamente pela falta de densidade das pessoas em cena. Aliada a isso, a constatação de que todos os intérpretes estarem praticamente no piloto automático. Wahlberg se encaixa confortavelmente no arquétipo do bondoso com recursos suficientes para utilizar a força quando o mal ameaça o cenário. Alan Arkin, igualmente se alinhando com um tipo por ele interpretado à exaustão, é um mentor carismático, entre o afetuoso e o deliciosamente rabugento. Iliza Shlesinger até poderia sobressair com sua coadjuvante " rouba-cena" histriônica, mas a repetição tonal de suas participações acaba desgastando essa boa peça de um quebra-cabeça bastante previsível.

Winston Duke desempenha burocraticamente o papel do sidekick, tendo poucos momentos para exibir singularidades, sendo basicamente o “gigante bondoso" que, assim como o protagonista, mostra poder de fogo quando mobilizado por uma causa nobre. Troco em Dobro deixa de lado a complexidade da dinâmica escusa que entremeia especulação imobiliária e jogatina, nesse movimento entrelaçando umbilicalmente mocinhos e bandidos, em função da necessidade asfixiante de barganhar com o espectador menos afeito às nuances. Tudo é demasiadamente dito, a vilania é escancarada, de modo semelhante ao que acontece com a benignidade de Spenser e do que os envolvem mais proximamente, e não há uma investigação menos debilitada das motivações de todos. Basta entender que o ex-policial agirá, sem pestanejar, onde os fracos e oprimidos estiverem precisando dele. Berg até ensaia uma piada equivalendo-o ao Batman, mas nem isso engrena.

Troco em Dobro é um entretenimento escapista e não há nada de errado nisso. Entretanto, a vontade prevalente de divertir por quase duas horas não deveria ser utilizada como desculpa para algumas opções, tais como a banalização de um assassinato em função do relevo da moral inquebrantável. Essa distorção aparece na cena em que Spenser tem acesso ao vídeo apresentando uma mulher espancada até a morte. É gritantemente sintomática da pegada essencialmente leviana do longa-metragem a forma como o protagonista vai caindo em si gradativamente no que tange à necessidade de corrigir as injustiças, isso enquanto, na prática, fica alheio à agressão fatal a alguém com quem mantinha níveis de amizade. No fim das contas o que interessa a Peter Berg é desenhar na telona um herói sem arestas efetivas, autointitulado badass para gerar uma cortina de fumaça a fim de não expor essa celebração incondicional. Porém, tal estratégia não funciona como deveria.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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