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Sinopse

Há desejos que nem a prisão e nem a tortura inibem: liberdade e justiça. Há razões que nos mantém íntegros mesmo em situações extremas de dor e humilhação: a amizade e a solidariedade. Relatos inéditos e surpreendentes da ex-presidente Dilma Rousseff e de suas ex-companheiras de cela do Presídio Tiradentes em São Paulo revelam o lado cruel da militância política.

Crítica

Parafraseando o que a ex-presidenta Dilma Rousseff diz em Torre das Donzelas, a prisão é opressora porque isola física e emocionalmente, embaralhando as relações do indivíduo com espaço e tempo. A cineasta Susanna Lira faz desse documentário uma necessária recuperação de narrativas ameaçadas de esquecimento no decurso histórico, já que fatos têm sido questionados pelos partidários da Ditadura Civil-militar que vigorou no Brasil por 21 anos. O título do longa faz alusão ao apelido dado a determinado pavilhão do presídio de Tiradentes, em São Paulo, ao qual foram levadas mulheres de alguma forma envolvidas nos ímpetos de resistência ao autoritarismo militar que simbolizava/alimentava o poder de modo tirano. A primeira operação, para além do simples colhimento dos depoimentos, é o oferecimento de um dispositivo para reconectar as sobreviventes com resquícios da época. A emulação do cenário surge como um artifício excepcional e certeiro.

Após a possibilidade das participantes desenharem, a partir de rememorações, a arquitetura do lugar que não mais existe – o presídio de Tiradentes foi demolido em 1972 –, a realizadora promove a incursão de todas elas na reconstrução feita num galpão. Valorizando a emoção das personagens em contato com algo que, imediatamente, as remete às sessões de tortura e às experiências posteriores a tais flagelos inomináveis, imputados a quem se encontrava sob a tutela do Estado, Torre das Donzelas sublinha a brutalidade com a qual as encarceradas foram tratadas até aquele instante, porém sem recorrer ao sensacionalismo, evitando as aproximações invasivas. Além de toda essa estrutura narrativa permeada pela manifestada vontade de possibilitar uma preservação sem a evasão dos limites da intimidade, o filme vai costurando engenhosamente os fragmentos dispostos por cada uma das testemunhas desse período nefasto/obscuro do Brasil.

Habilmente, Susanna permite que as mulheres adentrem de forma gradual no local cênico que remonta à famigerada Torre das Donzelas, nomenclatura devidamente problematizada, sobretudo, numa fração da produção debruçada sobre questões de gênero. Inicialmente, elas são vistas apenas perambulando por essa representação com intuitos de resgate e gatilho memorialístico. De modo crescente, porém, as sobreviventes interagem com o cenário a fim de adensar os contornos do intrincado processo de presentificação. Esta bem-vinda estratégia narrativa é ampliada por conta da presença em cena de atrizes que funcionam como espectros de um tempo vivido, fantasmagorias alternadas naquele espaço com as pessoas reais. As ex-presas factuais são, então, projetadas num âmbito com várias camadas. Tal criatividade confere singularidade à soma dos relatos e, ao mesmo tempo, estabelece a superfície lírica. A cineasta é bastante feliz nesse entrecruzamento de esferas.

Torre das Donzelas pode ser definido como um filme sobre a capacidade de resistir à suposta onipotência dos (vários) poderes dominantes. Por serem mulheres, as remanescentes do presídio de Tiradentes sofreram na pele não apenas a fúria cega dos opositores políticos, mas também o machismo que direcionava a sanha selvagem às suas feminilidades. O senso de comunidade, as estratégias para permanecer firme diante da natureza agressiva das agentes do Estado, a resiliência das cativas, tudo isso está posto, de forma bonita e por vezes lancinante, nesse documentário não substanciando somente por aquilo que é verbalizado, pois permite a expansão perceptiva oriunda da artesania das filigranas. Os testemunhos são diretos, sem papas na língua, mas há vitalidades desprendidas do funcionamento dessa operação que associa dizeres a gestos, tais como o reconhecimento da intimidade e a conseguinte valorização do feminino num terreno assolador, aqui desnudado com sensibilidade e bravura, ou seja, fazendo jus a essas notáveis protagonistas da nossa História.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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