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Sinopse

Mae Morton trabalha numa galeria de arte quando conhece Michael Block, jovem repórter investigando uma história relacionada à cidade da infância dela. Enquanto eles mergulham no passado, os dois se apaixonam, e uma antiga fotografia da família permite a Mae descobrir as romances escondidos de sua mãe.

Crítica

A Fotografia (2020) é um filme romântico até os ossos. A quase integralidade das cenas se passa em encontros amorosos, afirmações do amor ou rupturas de relacionamentos. Quando o jornalista Michael (Lakeith Stanfield) encontra um morador de Nova Orleans para uma reportagem sobre a poluição das águas, eles não conversam sobre política ou meio ambiente, e sim sobre suas paixões mal resolvidas do passado. Mais tarde, Michael encontra a galerista Mae (Issa Rae) em busca de informações para o mesmo artigo, mas ambos preferem falar sobre seus namoros e planos para casamentos. A jovem Christine (Chanté Adams) tem brigas frequentes com a mãe dentro de casa, sobre o mesmo tema: os encontros escondidos com Isaac (Y’lan Noel). No trabalho, diante dos computadores e com prazos apertados de entrega de matérias, Michael e o colega Andy (Kelvin Harrison Jr.) discutem sobre – adivinha? – as mulheres de seus sonhos. Romances contemporâneos costumam acelerar a parte dos encontros: as pessoas se veem, interessam-se uma pela outra, e está dado o contexto do namoro. No entanto, este roteiro toma o tempo de desenvolver a aproximação, a hesitação das primeiras palavras, o silêncio desconfortável quando se encerra o assunto, a dúvida sobre a hora certa de beijar. Saboreia-se cada aproximação romântica entre os personagens.

Isso decorre da maneira surpreendentemente séria com que a diretora Stella Meghie interpreta o amor. Para se adequarem ao gênero “familiar”, os romances hollywoodianos entre jovens adultos se tornaram cada vez mais infantilizados, pop e cômicos: pessoas apaixonadas de repente dizem frases inconvenientes, tropeçam e caem, tornam-se adolescentes pueris. Nada disso aparece neste filme, para o qual o sentimento amoroso constitui um tema seríssimo, capaz de determinar decisões sobre o futuro, a família e o trabalho. O conceito de romance adulto (e para adultos) se tornou tão associado ao erotismo softcore de Cinquenta Tons de Cinza (2015) e derivados que se torna surpreendente encontrar um projeto no qual as paixões entre adultos são abordadas com a solenidade de um ritual. O longo jantar entre Michael e Mae e o perturbador reencontro entre Christine e Isaac demonstram o caráter sepulcral das uniões afetivas. As pessoas amam e vivem de amor, porém sem perderem a cabeça nem deixarem de ser adultas por isso: ainda existem questões financeiras e profissionais a conciliar. A trilha sonora, ao invés do pop alegre das comédias românticas ou do R&B sussurrante do mommy porn, prefere um jazz enfumaçado, rouco e quase silencioso. Um aspecto triste paira sobre estas histórias de amor.

Para acompanhar o jazz, Meghie adota um estilo igualmente. A janela em formato scope favorece os casais posicionados no canto de algum restaurante descolado, em alguma galeria, escritório ou concerto musical. A iluminação permite que os personagens fiquem imersos no escuro quando sobem uma longa escada em espiral, com a câmera acompanhando cada passo. Os atores estão sempre muito bem vestidos, mas não de modo que destoem do ambiente ao redor. A atmosfera de sensualidade jamais se transfere ao sexo, bastante casto: assim que um casal começa a se beijar, a montagem corta para o dia seguinte, quando estão abraçados na cama, com o lençol cobrindo os corpos até o pescoço. A demora com que a edição se atarda nesta imagem demonstra o real interesse do filme, ou seja, não tanto o frenesi do sexo ou a empolgação do encontro, mas a ternura dos abraços, das pequenas frases gaguejadas, das pessoas que se abandonam sem se despedir, por não saberem como dizer adeus. Ao invés do amor enquanto explosão, a direção privilegia o sentimento amoroso como algo discreto e fluido, uma espécie de inebriamento gradual.

A estrutura, curiosamente, investe no formato simples do boys meets girl multiplicado por dois, em temporalidades distintas: Mae e Michael se apaixonam no presente, enquanto Christine e Isaac se apaixonam na década de 1980. Ambos os relacionamentos se desfazem por demandas profissionais e por amor próprio (“Minha imagem de sucesso não é ficar cozinhando o jantar para você”, admite friamente a mulher apaixonada), produzindo uma circularidade e uma repetição. Enquanto a montagem alterna entre as duas histórias, percebemos que Mae, a filha, repete o padrão de Christine, sua mãe, mesmo sem saber das escolhas desta última durante a juventude. Deste modo, a diretora retrata também as diferenças, mas sobretudo as semelhanças entre sucessivas gerações de mulheres negras, fortes e independentes nos Estados Unidos. A questão racial nunca se torna um problema dentro da narrativa estrelada quase exclusivamente por atores negros. Esta seria uma das vantagens de ter uma cineasta negra à frente do projeto, por abordar a raça com propriedade, naturalidade e sem instrumentalizá-la. Nas mãos de outro autor, as simples paixões e separações talvez nem durassem 60 minutos, porém o longa-metragem aproveita as dilatações do tempo nas quais se desenvolvem as ambiguidades necessárias a relacionamento multifacetado. O motivo da fotografia revelando segredos sobre um amor passado dos pais remete a As Pontes de Madison (1995), porém as semelhanças param por aí: Meghie e Clint Eastwood possuem sensibilidades totalmente diferentes.

As atuações obtidas por ambos os diretores também são muito distintas. Eastwood gosta muito das catarses emocionais (vide a cena de Meryl Streep chorando no carro, no filme de 25 anos atrás), já a jovem cineasta prefere um teor agridoce. Lakeith Stanfield cumpre a tarefa muitíssimo bem, evitando projetar a voz, engolindo as falas e travando o maxilar em sinal da introspecção do jornalista que nunca consegue dizer o que pensa. Ele possui força e variação no olhar, essenciais às cenas de impasse diante da mulher de seus sonhos, enquanto explora bem o corpo franzino, escondido dentro das jaquetas escuras e grandes demais. Já Issa Rae apresenta recursos limitados para o drama clássico. A habilidade inata para a comédia lhe ajuda pouco neste contexto, quando os habituais olhos arregalados, sem piscar, revelam-se insuficientes para as situações em que se encontra. Alguns diálogos importantes, nos momentos mais dramáticos, revelam a dificuldade da intérprete em construir uma evolução emocional apenas pelas expressões e pelo corpo. Ela acelera as falas, de modo abrupto, devido ao hábito da comédia. Mesmo assim, o resultado não compromete o romance competente, bem filmado e produzido. É muito saudável encontrar diretores que tratam jovens adultos enquanto tais, ao mesmo tempo que não se esforçam para agradar o espectador através de aceleração e reviravoltas fáceis. Os momentos em que os amantes se calam, por não saberem o que dizer, ou como dizer o que sentem, constituem momentos de cinema muito potentes.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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