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Sinopse

Nas montanhas cobertas de neve no Japão, toda noite um pescador parte em direção ao mercado da cidade. Durante uma dessas caminhadas, seu filho de 6 anos é acordado por sua partida e não consegue voltar a dormir. Logo depois, ao ir para a escola, ainda sonolento, ele se afasta do trajeto e decide vaguear sozinho pela neve.

Crítica

Um pescador sai ainda de madrugada rumo ao mercado da cidade. Antes, a câmera o observa demoradamente no aguardo da hora de sair. Não há o desejo de extrair desse momento algo para além da cotidianidade. Num quarto próximo, seu filho de seis anos, Takara (Takara Kogawa), é acordado pelos ruídos da partida, não mais conseguindo dormir. A ação, por assim dizer, é herdada pelo menino, que se configura no efetivo protagonista de Takara: A Noite em Que Nadei. O filme, de linguagem austera, sem diálogos, com planos predominantemente fixos e longos, oferece um olhar bastante zeloso a instantes aparentemente destituídos de importância vital. Os cineastas Kohei Igarashi e Damien Manivel não demonstram qualquer vontade de ancorar a trama em situações-chave e/ou deflagradoras do ponto de vista explícito e direto. Mais que a acompanhar deambulações do menino por cenários nevados, somos convidados a enxerga-las.

Minimalista, Takara: A Noite em Que Nadei é fracionado em três capítulos. A divisão não compartimenta o decurso, pelo contrário, servindo de pontuação relativa à poética desprendida de situações registradas com vagar e atenção. Sobressai, desde o princípio, a espontaneidade da relação de Takara com o dispositivo que o acompanha ora bem de perto, ora com distância expressiva. Quebrando o protocolo, o menino não entra na escola, toma o rumo da cidade e passa por cenários esvaziados de gente em virtude da forte nevasca que cai sobre o local. Essa perambulação solitária, ocasionalmente atravessada por transeuntes também aventurados fortuitamente pelas ruas, cria uma espécie de mundo próprio, permitindo a centralidade na jornada do protagonista. É nas entrelinhas, portanto, que certos elementos são expostos sensivelmente, como o carinho do garoto pelo pai, vide a cena em que ele se anima com a passagem do conhecido caminhão do mercado.

Há um paralelo considerável entre Takara: A Noite em Que Nadei e Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987), de Abbas Kiarostami, bem como é evidente a relação de parentesco cinematográfico com a obra de Yasujiro Ozu, especialmente no que tange a essa dinâmica familiar estabelecida nas filigranas. Kohei Igarashi e Damien Manivel apostam numa construção narrativa sem histrionismos, focada nesse garoto que, diferentemente do protagonista do longa de Kiarostami, com o qual dialoga conceitualmente em outros sentidos – as duas resistentes presenças infantis expõem conjunturas sociais – não tem uma missão claramente definida. Seu deslocamento é quase abstrato, embora diga evidentemente respeito ao querer estar com o pai. No segundo capítulo, O Mercado de Peixe, o pequeno segue pelas paisagens branqueadas de neve que refletem sua solitude. Ali surge uma faceta melancólica da coletividade japonesa. Pais e filhos mal convivem, pois enquanto os primeiros saem cedo e voltam tarde, os segundos alternam escola e a necessidade de virar-se.

Takara: A Noite em Que Nadei é lento, mas não moroso. Na terceira de suas partes, Um Sono Profundo, se atém à fragilidade desse menino absolutamente carismático, cuja simplicidade é integralmente valorizada pelos realizadores. A locomoção por cenários praticamente privados da presença humana é uma metáfora contundente, entretanto não estridente, das configurações familiares num Japão em que o trabalho é posto no pedestal da prioridade. Mesmo desacordado, fatigado pelo dia de andanças, Takara consegue encontrar o sentido de casa, auxiliado pela bondade de alguém sensibilizado por sua ingenuidade infantil. O plano final denota o caráter cíclico da rotina doméstica, esse âmbito imposto, no qual a proximidade entre pais e filhos é circunstancial, mas não menos afetuosa. O percurso do diminuto protagonista por uma solidão precoce, mas inevitável, é construído de forma bonita, sem a oferta de perguntas e respostas de bandeja. Imprescindível que o espectador contemple e se entregue ao filme para melhor sorvê-lo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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