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Sinopse

O fotógrafo Cris viaja para uma estação de pesquisa polar, onde pretende realizar selfies para uma exposição de fotografia que tem a música como base. Cris se surpreenderá com visões de mundo completamente diferentes. Na companhia de cientistas, como Cao e o britânico Mark, ele descobrirá novos pontos de vista a respeito da vida e da arte.

Crítica

A presença entusiasmada do fotógrafo brasileiro Cris (Selton Mello) numa estação de pesquisa no Ártico provoca fissuras na rotina dos cientistas. Especialmente na do britânico Mark (Ralph Ineson), encarregado de ensinar a ele os trâmites do lugar inóspito, cercado de neve e perigo por todos os lados. No semblante incomodado do veterano diante da empolgação do novato, que visa desenvolver ali um projeto insólito de cunho artístico, começamos a perceber do que é feito esse homem aferrado aos hábitos, ressentido de não poder acompanhar os estágios finais da gravidez de sua mulher. O recém-chegado fala do isolamento positivamente. Para ele, a impossibilidade de contato externo, seja por meio de computadores, celulares ou bugigangas que os valham, é uma libertação. Já para o experiente, que percebe o entorno pragmaticamente, não ter comunicação é afundar-se sobremaneira na vastidão de um espaço hostil, tão fascinante quanto misterioso. Soundtrack aborda esse fértil choque de mundos.

Desde os primeiros momentos, o longa-metragem do duo de diretores 300ml impressiona pela credibilidade da ilusão. A trama se passa na Antártida. Todavia, não foi filmada em locação natural, mas construída em estúdio, com a ajuda de fundos verdes e ferramentas de pós-produção. A despeito da trucagem, salta aos olhos a verossimilhança do cenário, não apenas no que tange ao aspecto visual, mas também ao equivalente sonoro. A concepção do que ouvimos amplifica a sensação de organicidade, sendo um dos pilares dessa construção narrativa singular. Portanto, por exemplo, quando Cris passa a se aventurar mais longe da estação, contrariando as indicações de Mark, sentimos verdadeiramente o perigo iminente. Sem substância, contudo, Soundtrack seria apenas um prova convincente das capacidades produtivas do cinema brasileiro. Não é o caso, pois o transcorrer da relação entre Cris e Mark, com o segundo assumindo a paternidade simbólica do primeiro, tem densidade expressiva.

No entorno da interação desses homens com objetivos distintos – um quer associar fotografias selfies e trilhas musicais numa exposição, já o outro monitora o ambiente em busca de informações – há uma equipe multinacional, incluindo o também brasileiro Cao (Seu Jorge). Soundtrack propõe algumas discussões profundas, levadas a cabo com sensibilidade pela dupla de realizadores. A mais marcante é natureza do trabalho humano, seja ele o artístico ou o científico. Esses dois polos, inicial e supostamente antagônicos, confluem na medida em que Cris e Mark compreendem alternadamente os esforços alheios. É particularmente bonita a cena do fotógrafo finalmente fazendo o cientista entender que uma boa música pode alterar a percepção do olhar puro e simples. Inteligente a opção por não deixar o espectador participar integralmente da experiência do personagem, afinal de contas ela, assim como tantas outras similares, sobretudo num entorno excepcional como aquele, é pessoal e intransferível.

Em meio a nevascas falsas, tão genuínas quanto poderiam parecer as autênticas, Soundtrack toca em questões pertinentes à posteridade, utilizando, inclusive, registros históricos para validar o discurso. Nesse sentido, o áudio de Alfred Hitchcock esmiuçando calmamente o seu conceito de felicidade e a carta lida pelos astronautas pioneiros que saúdam os habitantes do planeta azul mencionando Deus – valendo-se de uma passagem emblemática do livro de gênesis – são instâncias complementares. Aliás, constantemente o dueto 300ml estabelece pontos de fricção e subsequentemente justaposição entre esferas aparentemente incompatíveis. Arte e ciência se imbricam, ambas procurando respostas acerca da experiência humana na face da Terra. Contando ainda com um elenco afiado, o filme é bem mais que o resultado de um feito meramente técnico, porque vai ao encontro de complexidades, nem sempre as perscrutando sem convenções, mas tentando ir além do óbvio, mirando firmemente o horizonte, nem que isso signifique almejar algo, a priori, inalcançável.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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