Crítica


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Sinopse

Mesmo diante dos apelos da melhor amiga para abraçar a solteirice, uma especialista em mídias sociais não consegue deixar de pensar que gostaria mesmo é de encontrar um amor daqueles de novela.

Crítica

Diante de uma comédia romântica recheada de personagens reproduzidos de jornadas parecidas, familiares pela óbvia filiação a uma fórmula manjada, o que pode nos interessar? O modo como os clichês são utilizados, eventualmente subvertidos e/ou retrabalhados a partir de óticas perspicazes? Os lugares-comuns não são necessariamente um problema, afinal de contas se tratam de dispositivos para que o público – especialmente um heterogêneo, bloco difícil de ser “fisgado” com o específico – se identifique imediatamente e empenhe sua adesão numa espécie de processo direto de espelhamento. Solteiramente coloca em cena duas perspectivas antagônicas sobre os relacionamentos amorosos. Dineo (Fulu Mugovhani) é obcecada pela ideia de ter alguém para esperá-la à noite, carregando um apego quase patológico pela ideia de namorar e adiante casar. Já sua melhor amiga, Noni (Tumi Morake), prefere curtir a vida adoidada e encerar-se nos muros construídos em torno de si para proteger-se de efeitos-colaterais potencialmente dolorosos. Fácil se identificar com uma delas.

Solteiramente é calcado nessa simplificação da condição relacional em duas possibilidades. As poucas relativizações apenas surgem no final, quando as lições obviamente foram apreendidas por ambas, num procedimento de relaxamento das convicções até então sólidas. Boa parte do filme dirigido pelos estreantes Katleho Ramaphakela e Rethabile Ramaphakela é reservada às demonstrações de inadequação de Dineo à solteirice e, em semelhante medida, a análoga dificuldade de Noni para aceitar o vínculo que está nascendo com o gerente de um bar aparentemente incompatível com seu estilo casual, baladeiro e despojado. Além de trabalhar de maneira simplória e comum essa inversão de lugares, os realizadores sintomaticamente apagam quaisquer traços de singularidade dessa história ambientada na África do Sul. Eles claramente se encaixam numa espécie de globalismo homogeneizante, formatando a produção à ideia de “mercado internacional”, não adequando particularidades ao assunto universal dos envolvimentos e das expectativas em torno deles.

Sabem aquela máxima de Leon Tólstoi: “fale de sua aldeia, e estará falando do mundo inteiro”? Pois bem, Katleho Ramaphakela e Rethabile Ramaphakela não se empenham em mostrar como essas dinâmicas amorosas/sentimentais/individuais são compreendidas dentro de uma lógica particular, pois estão mais preocupados em lançar mão de um arsenal de engrenagens próprias às comédias românticas norte-americanas, assim curvando-se às fórmulas que comercialmente "deram certo", quiçá justamente atendendo a uma expectativa da Netflix, a empresa encarregada de distribuir o filme mundialmente. Não se trata de esperar exotismo de um filme do continente africano. Muito longe disso. Lamentável é que o longa seja tão subserviente aos padrões criados numa sociedade com componentes e funcionamentos bastante diferentes, em que pese nisso, obviamente, a gradativa derrubada das fronteiras justamente em virtude da globalização. Nem mesmo o fato de todas as mulheres do filme utilizarem peruca, assim restringindo seus cabelos naturais ao âmbito da intimidade, é sequer sinalizado. Aliás, as protagonistas demonstram pudores com suas madeixas até em casa, vide a forma como Dineo sempre utiliza um turbante, escancarando a vergonha de seus fios naturais.

Além de ser repetitivo e frequentemente inclinado ao exagero para sublinhar determinados pontos de vista, Solteiramente oferece convenientemente várias soluções fáceis para problemas aparentemente difíceis e profundos. De uma hora para outra, os personagens perdoam, magoam, reatam e se apresentam como pessoas melhores partindo de reflexões superficiais e cheias de frases feitas. Também são enviesadas e claudicantes as fagulhas do discurso acerca do empoderamento feminino. Noni, a que sustenta a necessidade de encontrar felicidade na solteirice, sem para isso depender da companhia de homens, cria uma falsa sensação de que a única alternativa ao comprometimento é uma vida de curtição noturna. Nesse sentido, Katleho Ramaphakela e Rethabile Ramaphakela também perdem uma oportunidade valiosa para compreender o comportamento careta de Dineo ao simplesmente passarem por cima das consequências dela dizendo que entre a amiga sexualmente livre e uma prostituta a única diferença é o fato desta cobrar. De positivo, os ótimos desempenhos de Fulu Mugovhani e Tumi Morake, atrizes que se encaixam bem nessa narrativa excessivamente mimética.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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