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Sinopse

O clássico Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, serve de base para a busca de pessoas que, como os personagens do poema, fugiram da seca no Nordeste e lutam pelo direito à terra.

Crítica

À primeira vista, Severines (2020) possui uma abordagem convencional até demais. O diretor Eduardo Monteiro conversa com dezenas de ativistas pelo direito à terra, sobretudo no Movimento dos Sem Terra (MST). Eles se apresentam, dizem quantos anos e filhos possuem, de qual cidade vêm e a situação de desamparo que os levou a procurar o coletivo. Em geral, evocam as conquistas obtidas e as derrotas face a governos autoritários - a gestão Bolsonaro é indiretamente citada. As vozes se reforçam em uníssono para defender a resistência face aos burocratas. Não há discordâncias ao longo dos depoimentos, abraçados sem ressalvas pelo cineasta. Trata-se de um cinema político clássico - uma obra de mensagem onde o autor concorda com seus personagens que concordam entre si. Longe de constituir um convite à reflexão, o curta-metragem traz hipóteses e conclusões prontas ao espectador, determinando quem está certo e errado. O mérito da clareza se encontra com o demérito da simplificação típica das ferramentas pedagógicas - o discurso prefere atingir um escopo mais amplo do que aprofundar os temas debatidos. Em última instância, pode-se falar numa obra retórica, revestida do caráter ativista por sua própria existência. A iniciativa supera o valor da articulação de imagens e sons.

Entretanto, alguns fatores permitem distinguir o resultado dos cansativos talking heads, as cabeças falantes habituais no documentário jornalístico. Monteiro opta por um formato na vertical, de janela estreita, remetendo às gravações em telefone celular e à estética da selfie. Na era digital e pós-moderna, o retrato se transformou em autorretrato - qualquer intervenção se torna essencialmente uma fala de si próprio. Em consequência, o autor se aproxima ainda mais daquelas pessoas, convertendo-se numa delas - o sentimento de empatia se expande aos olhares por trás da câmera. Em oposição aos elegantes scopes e às câmeras pesadas de filmagens onerosas, opta por um formato caseiro, de urgência, apropriado à intimidade e ao compartilhamento. Os rostos estão espremidos neste espaço que se autoriza enquadramentos realmente interessantes: os depoentes captados de corpo inteiro dentro de uma casa, uma silhueta que se desloca ao longe pela natureza, o passeio de barco pelo lago, com os arranha-céus perturbando o horizonte ao fundo. A verticalização prejudica as cenas em conjunto, porém valoriza as falas individuais, quando os protagonistas ocupam a integralidade do plano. Recorre-se à metonímia: ao invés de buscar reuniões e discussões da comunidade, o curta isola os testemunhos um a um. Há espaço para a psicologia em meio ao painel sociológico.

Em seguida, o preto e branco fortemente contrastado, obtido digitalmente em pós-produção, favorece o distanciamento do espectador. Sem as cores, a representação perde as características daquilo que o olho humano vê. Enquanto a câmera se aproxima de corpos e rostos, a dessaturação toma alguns passos atrás, em forma de equilíbrio. Alguns procedimentos de estetização poderiam chamar atenção excessiva à direção, ou romantizar o tema escolhido. Felizmente, neste caso, Monteiro permanece humilde por trás do dispositivo, fornecendo a oportunidade para seus personagens se expressarem como quiserem, dentro das casas e sobre a terra, em cenas de aparente descontração. Não parece ter havido sequências condicionadas às necessidades da câmera - neste caso, é o dispositivo cinematográfico que se adequa ao mundo. Já a montagem privilegia a dissociação entre som e imagem, ou seja, a sobreposição da fala aos registros cotidianos dos jovens pela comunidade, de maneira concisa e discreta. Quando o espectador se acostuma às escolhas de direção, chega a surpreendente conversa de um rapaz distante da câmera, que parece flagrá-lo sem ser percebida. Há uma variedade preciosa de enquadramentos e formas de aproximação dos personagens, evitando o estilo engessado das entrevistas tradicionais. 

O elo com Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, converte-se numa referência sutil demais para justificar o título - o filme se abre com Bertold Brecht, e se encerra com o coro “Viva o MST!”. No entanto, paira o desejo de uma poesia humanista obtida com os personagens, em vez de a partir deles, ou sobre eles. O espectador em busca de informações novas e aprofundadas a respeito ao direito à moradia encontrará uma cartilha de intenções e descrições amplas - nada de surpresas, revelações ou investigações, visto que a abordagem acadêmica passa longe das pretensões do autor. O discurso é incisivo em seus princípios, embora evite apontar dedos aos culpados e mencionar projetos de lei favoráveis ou desfavoráveis ao grupo. O curta-metragem se encerra em chave moral, além de política: sabe-se da importância de persistir no combate, ainda que faltem especificações a respeito de como combater, contra quem, em qual momento, por meio de quais ferramentas jurídicas, midiáticas, simbólicas. A quem interessar possa, resta a homenagem singela “àqueles que lutam a vida toda”, nas palavras de Brecht. A persistência se torna valor e finalidade em si própria.

Filme visto online no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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