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Sinopse

Desde o começo da pandemia, Francisco tem seguido à risca todas as medidas de segurança para evitar a contaminação por Covid-19. No entanto, dez meses se passaram, e ele está carente de sexo e contato humano. Enquanto isso, vê os colegas ignorando os perigos e levando a vida normalmente. Francisco decide encontrar uma maneira de resgatar sua vida sexual, mas sem tirar a máscara, nem deixar de lado o álcool gel.

Crítica

Certo fator vinha provocando incômodo nos filmes referenciais em relação à pandemia de Covid-19. Alguns dramas lamentavam a crise sanitária e as perdas humanas, enquanto as comédias lembravam a necessidade de usar máscaras, ficar longe das pessoas queridas, higienizar as mãos. Em outras palavras, a primeira leva de produções audiovisuais tendo a Covid-19 como temática central abraçou seu tema de maneira explícita e direta, constatando o óbvio. É difícil dizer que qualquer uma dessas ruminações iniciais tenha surtido impacto significativo ou despertado reflexão, seja porque ainda estávamos imersos demais no cenário para precisar de uma explicação, seja porque não nos traziam nada de efetivamente novo em relação ao tema. Com República (2020), de Grace Passô, começamos a entender que o absurdo, a fantasia e o surreal seriam melhores ferramentas para introduzir o distanciamento necessário ao debate. O início de 2022 parece ser a época ideal para se compreender a iniciativa tão engraçada quanto triste de Seguindo Todos os Protocolos, dirigido por Fábio Leal. O diretor parte do pressuposto que seus interlocutores conhecem bem a pandemia e suas restrições — algo que deveriam ter feito seus antecessores, aliás. Para além de pontuar as evidências, encontra o espectador numa fase transitória entre a continuar na crise e vislumbrar o fim da mesma. 

Os personagens simbolizam esses movimentos antagônicos: Francisco (interpretado pelo diretor) mantém uma relação neurótica com o vírus e a doença, considerando a si próprio um polo de resistência, face à parcela crescente da sociedade que ignora os riscos e retoma a vida “normal”. Há um movimento politicamente engajado, mas também arrogante, na postura do protagonista que se considera mais seguro, e portanto mais correto, do que os colegas. O homem solitário deseja e repudia aquilo que os demais possuem: o sexo livre, as saídas pelas ruas, o contato humano. Como não estima ser legítimo ter relações sexuais neste momento, vira-se com violência contra aqueles que o fazem — a exemplo do nerd capaz de tirar boas notas a partir de seus estudos, e que prefere denunciar o amigo colando. O texto é bastante hábil na brincadeira entre gestos individualistas e movimentos coletivos, na ciranda entre vergonha e orgulho, entre prazer de si e prazer dos outros. É divertido rir deste anti-herói paranoico, porque ele representa uma caricatura de nossas contradições março de 2020. Ao invés de conceber somente figuras respeitosas aos protocolos, ou fugindo por completo às normas (como costumam fazer as comédias pastelão, a exemplo de 5x Comédia), o autor embute tais dilemas no interior de cada personagem, criando subjetividades complexas e de fácil identificação. 

Francisco exige teste de vacinação, banho e troca de roupas aos rapazes que vêm visitá-lo, antes de fazer sexo através de uma película plástica. Mas está tudo certo, ele explica, porque encontrou as recomendações num artigo científico pela internet. Além da consciência de se proteger de uma doença, existe o prazer de fazer a coisa certa. Seguindo Todos os Protocolos explora a moral da Covid e a dificuldade de sustentá-la a longo prazo. O roteiro possui uma estrutura muito inteligente neste sentido, abrindo-se com uma longa sequência cômica, capaz de acolher o espectador. Uma vez conquistado, ele encontrará temas sombrios. A conversa via webcam com o namorado distante (Marcos Curvelo) resulta em algumas pérolas da contemporaneidade. Na ânsia de corresponder aos códigos de conduta adequados à juventude progressista, os rapazes costuram o tópico da Covid-19 com o lugar de fala, o colorismo, a pornografia, a fetichização dos corpos negros. Leal representa a extrema vigilância desta militância de esquerda sem ridicularizá-la nem dispensar sua importância. O autor apresenta um humor autoconsciente, valorizando afetos enquanto revela as imagens engraçadas da dificuldade de pular corda na sala de casa, e a obsessão de aguar as plantas sob a chuva torrencial. O espectador é jogado para dentro da narrativa através de uma sucessão vertiginosa de tiradas políticas, e então recebe uma rasteira da montagem quando um relacionamento perverso, beirando o estupro, se insere na trajetória do homem recluso. Assim, o riso se cala e a sensação de medo toma conta da experiência. Cria-se uma inesperada montanha-russa emocional em menos de 80 minutos de duração.

Se o primeiro ato se entrega à comédia, e o segundo ao drama, o terceiro mergulha na fantasia lúdica, em síntese à estrutura dialética. Os protagonistas efetuam performances usando máscaras, os jovens se abraçam e dançam num parêntese extradiegético, os amantes nus viajam de motocicleta pela madrugada. O passageiro segura amorosamente o pênis do condutor, convertido em guidão, ponto de apoio, objeto de coleção. Neste percurso, corpos se abraçam, se agridem, se desprezam. “Eu não quero sair sem gozar”, reclama o parceiro abusivo. Os direitos parecem mudar durante o período de isolamento, como se o fato de o sujeito ter permanecido tanto tempo em reclusão lhe desse um passe livre para desfrutar do hóspede ao seu bel-prazer. A solidão gay adquire um teor de exagero que poderia pender à tragédia ou à farsa — Leal prefere este último. Antidepressivos, terapeutas online, vídeos pornográficos combinados com entrevistas de Átila Iamarino, cartas de tarô, porta-máscaras, programas de ginástica e áudios de relaxamento combinados com uma narração erótica revelam a ruptura dos nossos tempos entre o privado e o público, o meu e o do outro. Sentimo-nos incomodados pela festa alheia, pela irresponsabilidade de um terceiro que pode vir a me afetar. Um sujeito não carrega apenas sua libido, seu desejo e suas pulsões, ela porta também um comportamento social desempenhado lá fora. Vida íntima e vida pública se fundem durante esta pandemia exposta nas redes sociais.

Às vezes, paira a sensação de que o discurso do longa-metragem poderia se expandir, explorar os sons dos vizinhos, as pessoas caminhando pelas ruas, os porteiros e amigos ao telefone. Haveria novas maneiras de trazer a sociedade para os cômodos de Francisco via sons e metáforas. Leal se atém a um grupo restrito de personagens e espaços, evitando enveredar pelo jogo de ambiguidades. As conversas via webcam possuem o típico enquadramento fixo e centralizado, enquanto as relações íntimas carregam um misto de apreço e desinteresse. Felizmente, a nudez não possui qualquer intenção de chocar, transformando o pênis flácido numa imagem digna de humor e ternura. O longa-metragem se encerra de maneira simples, ainda que ofereça belas provocações capazes de ressoar com o público pós-sessão. Por trás da aparência caseira, no melhor sentido de identificação e proximidade, existem temas sensíveis a respeito do consentimento, da saúde mental, da autoestima e da multidão solitária. O diretor tem se mostrado um exímio cronista dos nossos tempos, combinando diálogos e interações naturalistas com um olhar crítico a si próprio. A decisão de se colocar na função de protagonista, de maneira frontal, porém reservada, resume a postura do filme. O projeto tem plena ciência das falhas de uma sociedade individualista, porém ao invés de denunciá-las, busca compreender suas manifestações. O carinho por sujeitos falhos resulta numa obra em primeira pessoa que jamais se encerra em si própria. De dentro de seu apartamento, Leal percebe com clareza a problemática geração lá fora.

Filme visto online na 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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