Crítica


8

Leitores


5 votos 9.2

Onde Assistir

Sinopse

Misturando fantasia e distopia, desperta a curiosa sensação de alívio e desespero diante do anúncio inesperado, até algumas reviravoltas na trama forçarem a mulher a se confrontar consigo mesma. De repente, a protagonista isolada em casa encontra uma figura que vem das ruas.

Crítica

“O Brasil é um sonho! O Brasil é um sonho!”. A personagem principal deste curta-metragem acorda com a notícia inusitada. Primeiramente, acredita se tratar de um rumor banal (afinal, estamos em tempos de fake news), mas logo confirma a informação por meio de uma segunda fonte. Então o Brasil é um sonho! Ideia singela e interessante da diretora, atriz e roteirista, Grace Passô: por um lado, o sonho corresponde a algo bom, prazeroso, sem limites. O sonho representa uma escapatória do real, e em relação a este, pode implicar numa melhoria ou idealização. Se algum turista chegasse ao Brasil e exclamasse, diante de uma paisagem, “o Brasil é um sonho!”, estaria fazendo um grande elogio. Por outro lado, o sonho não é real, é criação, e uma hora, acaba. Isso significa, conforme conclui a personagem, que “o Brasil não existe”: somos apenas o produto da imaginação de alguém que pode acordar a qualquer momento. Trata-se ao mesmo tempo de um alívio e uma angústia: se o país terminasse enquanto ideia e enquanto vivência, acabariam os problemas relacionados a ele, mas em paralelo, acabaríamos nós, nossa família, as pessoas queridas. Sorrindo e chorando ao mesmo tempo, a protagonista perturbada grita pela janela.

República (2020) constitui uma curiosa experiência entre a linguagem do documentário e da ficção, entre a aparência de mínima intervenção (com planos longuíssimos, luz natural, sons ambientes) e a fantasia emprestada ao realismo fantástico. Em cerca de quinze minutos, o projeto ressignifica a história diversas vezes aos olhos do espectador: primeiro, assume-se enquanto ficção convencional (as vozes de negros ancestrais, que retornam ao final), para em seguida mergulhar na fantasia, e então empregar o estilo metalinguístico para, mais uma vez, confrontar a atriz-interpretando-uma-personagem a outra personagem. Os recursos podem soar confusos quando descritos enquanto tais, porém se sucedem com fluidez, às vezes dentro de um único plano. A protagonista atua para a câmera colada ao seu rosto, para então sair da personagem e criticar sua própria atuação. A direção de fotografia, silenciosa e cúmplice, torna-se uma voz afetuosa contribuindo ao processo. O filme propõe diferentes maneiras de negar sua própria linguagem, solicitando do espectador uma interpretação ativa e um poder de questionamento em relação ao que vê: se começamos com a ficção, o que dizer da resposta de pessoas nas ruas, igualmente surpresas com a notícia sobre a ontologia imaginária do Brasil? Se mergulhamos num documentário, por que a câmera continua enquadrando a protagonista em linguagem fictícia, diferente daquela do making of?

Neste caso, a linguagem constitui a forma e o tema, ao passo que a brincadeira sobre o Brasil se desdobra em uma tragédia mais amarga. Ao confrontar-se consigo mesma (a mulher de classe média face à mulher pobre, a figura protegida em sua casa diante da figura ameaçadora que vem das ruas), ela se confronta ao fato de que não existe apenas um Brasil, mas vários. “O seu Brasil acabou, e o meu nunca existiu!”, grita a segunda voz. Note-se que não se diz “mas”, em sinal de oposição, e sim
“e”, sugerindo adição. Uma situação não existe apesar da outra, e sim ao lado da outra, em paralelo. Dentro da mesma República (compreendida enquanto Brasil e enquanto local específico, no caso, o bairro de São Paulo), desdobra-se as ideias de nação: duas pessoas muito próximas podem ter experiências totalmente diferentes de pertencimento, devido às suas condições. Logo, a pessoa em situação de rua não teria o mesmo olhar sobre este “sonho” do que aquele da atriz em sua casa. O longo olhar de uma mulher negra num quadro, posicionado “por acaso” diante da câmera, trata de encarar o espectador e interrogá-lo sobre os diferentes olhares de pessoas negras ao público. Qual é o seu Brasil? Você receberia com alívio ou desespero a notícia sobre a farsa de sua existência no mundo? A invisibilidade das pessoas nas ruas dialoga de maneira potente com a ideia de inexistência, ou de abandono por parte de uma nação mais ampla. Quando as ruas invadem o apartamento, a protagonista é obrigada a reconhecer, na figura monstruosa, uma outra de si mesma.

Conversando sobre seu processo de criação, Grace Passô admitiu que não sabe ao certo o que todas essas passagens significam, e que não pretende desvendá-las nem explicá-las. Melhor assim. Os olhares fortes, e ao mesmo tempo ambíguos da atriz, permitem uma infinidade de leituras ainda mais ricas porque não restritas a uma explicação pontual. Quando a personagem-do-apartamento encara a personagem-das-ruas e ambas encaram o espectador, a triangulação de rostos silenciosos, muito bem orquestrados pela fotografia e montagem, fornece mais uma potente interpelação ao público. Seríamos nós uma terceira Grace Passô, encarando-nos uns aos outros? República se encerra enquanto pesadelo kafkiano: “Quando certa noite a mulher sem nome acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseada no sonho de alguém”. O formato se comporta muito bem dentro da estrutura do curta-metragem, por construir uma série de alusões que se desenvolvem sem se resolverem, nem perderem o mistério. Existe um refinamento de atuações, mise en scène e fotografia impressionantes para um projeto literalmente caseiro. Além disso, enquanto retrato da quarentena, transmite o sentimento ambíguo de estar tão livre quanto preso dentro de casa, com anseio e medo simultâneos de estabelecer contato físico com outras pessoas, querendo despertar de uma situação tão absurda que soa incompatível com a realidade.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *