Crítica


6

Leitores


32 votos 8.4

Onde Assistir

Sinopse

Após a morte da filha, vítima de um tiroteio na escola, um casal precisa lidar com o luto. Individualmente e enquanto dupla, ambos terão de transpor barreiras quase impossíveis caso pensem em continuar juntos.

Crítica

O primeiro aspecto digno de atenção quanto à popularidade deste curta-metragem se encontra no próprio fato de ter sido descoberto e visto pelo público. Os curtas representam um formato de acesso limitado ao espectador distante de festivais e mostras especializadas. Por este motivo, a presença numa grande plataforma de streaming, chamando a atenção entre tantas comédias natalinas e séries grandes proporções, pode ser comemorada. Segundo, os diretores Michael Govier e Will McCormack possuem notável preocupação com a linguagem específica da animação, explorando as possibilidades oníricas e não-realistas do desenho. Ao contrário de tantos curtas-metragens que seduzem o público pela simplificação da imagem e do conteúdo (vide as pílulas inspiradoras pelo YouTube, confundindo animação com a comunicação exclusivamente infantil), Se Algo Acontecer... Te Amo (2020) busca abraçar uma variedade de sentimentos e reações possíveis diante do luto.

Isso não significa que o projeto possua qualquer ousadia narrativa ou discursiva, longe disso. Diante da história dos pais devastados pela perda recente da filha de 10 anos de idade, os criadores apostam nas ferramentas clássicas: a fotografia da família feliz, a camiseta da garotinha no armário, o silêncio diante do quarto vazio, a bola de futebol rolando pelo chão, uma canção cujas letras comentam a angústia dos adultos. Para um filme voltado à poesia, a dupla de diretores trabalha com recursos literais até demais: eles retratam a lágrima escorrendo no rosto da mãe, a comida empurrada sem vontade no prato (mais um símbolo gasto de apatia), a memória empolgante do parto. Trata-se de uma gama de sentimentos universais e de fácil compreensão, mesmo em contexto desprovido de diálogos, graças à variação extrema - no caso, a alegria eterna de ter a garotinha em casa contra a desolação profunda de perdê-la. Os estúdios Pixar e Laika construíram obras deslumbrantes sobre o luto (Up: Altas Aventuras, 2009, Coraline e o Mundo Secreto, 2009), nos quais a perda era ilustrada em gama densa e variável. Aqui, privilegia-se a nostalgia romantizada, ignorando eventuais sentidos de culpa, remorso ou ainda alívio relacionados à perda de uma pessoa querida.

Esta simplificação se intensifica no que diz respeito à tragédia. Gover e McCormack apelam para a mise en scène mais sóbria possível, filmando a porta de um ponto de vista externo à catástrofe e sugerindo sons apavorantes em off. Estas são ferramentas típicas do live-action, embora a animação permitisse voos mais altos para a representação dos tiroteios nas escolas. Não se discute o fenômeno social em momento algum: a jovem poderia ter sucumbido a um câncer ou um acidente de carro, visto que o único movimento interessante à premissa se encontra na tristeza dos pais. Apropria-se de um fenômeno muito específico da sociedade norte-americana (vide a bandeira colorida no cenário monocromático), porém despido das discussões políticas que o cercam. Assim, este não seria um curta-metragem sobre tiroteios, mas sobre a dor da perda em qualquer circunstância. A diluição da especificidade torna o resultado mais universal, e também menos multifacetado. Entretanto, diante da ausência de linguagem oral e a amplitude do retrato, ele pontua em estilo acessível as falhas do país e espectadores de qualquer parte, inclusive aqueles distantes do belicismo e competitividade estadunidenses.

Em termos de qualidade de animação, o uso das sombras do pai e da mãe comentando o estado emocional de ambos produz um efeito respeitoso. Cada vez que a direção e a montagem se permitem imaginar abismos, falhas no chão, transformação de objetos e outras metamorfoses lúdicas, o resultado cresce bastante. A beleza dos traços simples, em fundo branco infinito, reforça a solidão dos adultos que sequer conversam entre si, perambulando por uma casa inóspita. A trilha sonora onipresente navega entre a delicadeza e a manipulação emocional, em virtude de sua insistência. Talvez a melhor maneira de descrever o projeto seja pela percepção de uma competência artística igualmente proporcional à falta de ambições. Os diretores não miram muito alto, e por isso, cumprem bem a tarefa modesta a que se propõem. Acena-se à espiritualidade (a menção aos “deuses”, na trilha sonora; o plano aéreo no final) sem tornar o resultado explicitamente religioso; sugere-se uma trajetória de sacrifício da pureza infantil, porém sem reforçar o maniqueísmo. O curta-metragem navega entre posicionamentos fortes, evitando os extremos. Ele conquista um meio-termo mais pungente nos sentimentos do que na visão de mundo.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *