Crítica
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Crítica
Especialmente num país com alto contingente de pobreza como o nosso, o futebol acaba se tornando um oásis. Meninos e meninas sonham em quebrar as barreiras impostas pelas dificuldades financeiras ao se tornarem peças conhecidas no tabuleiro do esporte bretão. Não são raros os casos de pessoas que tiveram as suas vidas completamente alteradas por conta dos benefícios proporcionados por contratos repletos de cifras polpudas e pela notoriedade que uma das modalidades mais conhecidas do mundo oferece aos seus protagonistas. No entanto, são ainda mais numerosos os casos de gente que não conseguiu alcançar esse sucesso, dos que lutam contra as dificuldades para sobressair num meio tão concorrido quanto repleto de nuances e desvãos. Dirigido por Petrônio Lorena, Sapato 36 oferece uma perspectiva diferente dessa relação variada com o futebol: a dos apaixonados que mantém certa pureza nos campinhos de várzea. O filme não elege um protagonista, pois se propõe a desenhar um painel tão afetivo quanto indicativo do universo da várzea de Santo Amaro, tradicional bairro da cidade do Recife. Nos primeiros movimentos sobressai a figura de Marconi Gadelha, organizador do maior campeonato local de futebol amador. E ele carrega esse desejo de soar como um profissional, mas sem perder aquele brilho que remete diretamente à essência da atividade que se tornou regida por somas enormes.
Petrônio Lorena transita pelas vielas do barro de Santo Amaro para revelar os personagens desse mundo, mas sem observá-los de perto, preferindo a isso utiliza-los como retalhos para tecer uma colcha. Mas, antes mesmo de começar a ouvir essas figuras importantes para seu discurso, o realizador dá umas pinceladas com diversas imagens da localidade: a convivência dos moradores em torno dos vários campinhos de jogo, bem como a organização dos certames e os bastidores que precedem a entrada dos times em campo. Isso causa um sentimento de familiaridade, algo valioso especialmente ao espectador que não está acostumado com o universo do futebol. Ainda que a falta de identificação dos entrevistados seja um problema para quem não os conhece previamente, o filme cria um caminho relativamente simples de ser seguido, às vezes até mesmo alcançando algumas notas de universalidade. Sim, pois das conversas se desprendem coisas comuns, tais como frustrações, desejos de sobressair, amores incondicionais nem sempre correspondidos pelos resultados econômicos obtidos, bate-papos sobre a necessidade de persistir mesmo contra as inúmeras probabilidades desfavoráveis e uma disposição por continuar tentando. A narrativa mistura bem os flagrantes, os depoimentos tradicionais e a captura dos momentos emocionantes do futebol, como o gol, a falha e a vitória.
O futebol impõe um desafio significativo para quem quiser se apropriar dele cinematograficamente. De que modos reter a emoção do esporte, sobretudo do ponto de vista da imagem, ao se distanciar da lógica visual e narrativa das transmissões de televisão, por exemplo? Não são incomuns as produções que falharam justamente neste quesito, o de conseguir capturar a complexidade existente num campo de jogo. Sapato 36 não inventa a roda nesse sentido, ou seja, não traz imagens super elaboradas ou mesmo que tentam enfatizar propriamente essa gama de sensações que surgem nas quatro linhas. Petrônio está mais para um observador que seleciona determinados lances como indícios relevantes de um discurso focado na adversidade. Por exemplo, enquanto um jogador (também pastor evangélico) contabiliza os jogos que faz semanalmente por amor ao esporte (e são muitos), ao fundo vemos uma partida acontecendo num campinho de terra. Mas, Petrônio se esforça para escapar às estratégias batidas do documentário jornalístico, como quando projeta imagens da imprensa num lençol estendido entre as traves ou ao cobrir a câmera com cabelos aparados pelo sujeito que os admiradores de futebol reconhecerão em função da irreverência. Nem sempre essas escolhas são potentes, às vezes são repetidas sem variações, mas, ao menos, há o desejo de dar novos territórios à imagem.
O grande calcanhar de Aquiles de Sapato 36 é a sensação de esgotamento que prevalece antes que ele descambe para os finalmente do campeonato. Em determinado ponto do filme, Petrônio cria uma longa partida de futebol de botão entre o Íbis – de Santo Amaro, considerado o pior time do mundo – e o selecionado com alguns dos maiores futebolistas da história do esporte. O recurso lúdico se estende mais que deveria. Logo depois, a breve observação sobre a realidade feminina da várzea também soa como tentativa de dilatar o filme para ele ultrapassar os 60 minutos de duração e assim ser considerado comercialmente um longa-metragem. Mesmo que não integre tão bem esses universos masculino e feminino, o realizador ao menos consegue demonstrar que a precariedade é ainda mais opressora às mulheres. Por fim, o roteiro não elabora uma diferença: as mulheres ainda desejam ser profissionais enquanto boa parte dos homens observados já teve essa oportunidade ou mesmo dificilmente a terá por conta da idade avançada para os parâmetros da atividade. A especulação imobiliária que ameaça os campinhos também é pontuada, mas não aprofundada. Pensando no saldo, o documentário comandado por Petrônio Lorena lança luz de modo ao menos competente numa seara pouco glamorosa do futebol e revela aspectos afetivos da pátria de chuteiras.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 6 |
Alex Gonçalves | 5 |
MÉDIA | 5.5 |
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