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Sinopse

Acompanha a amizade improvável entre uma jovem camponesa revolucionária, encarregada de vigiar um escritor dissidente, homossexual. Isolados na região rural de Cuba, no início dos anos 1980, os personagens aos poucos vão descobrindo que têm mais coisas em comum do que suspeitam.

Crítica

Realizado com o aval do Estado, Santa e Andrés, entretanto, teve sua exibição proibida em Cuba, terra de origem e sobre a qual reflete voltando ao passado, mais precisamente ao início dos anos 80. Os letreiros do prólogo carregam denúncias de condutas espúrias da administração Fidel Castro com relação, especialmente, aos homossexuais, então confinados em espaços destinados a oferecer uma suposta reeducação. Faz sentido, inclusive político, que o cineasta Carlos Lechuga se valha das extremidades para permitir uma reflexão acerca da dificuldade de conviver com as diferenças, sejam elas ideológicas ou de orientação sexual. Há dois protagonistas no longa-metragem. Santa (Lola Amores) é uma jovem camponesa revolucionária incumbida de vigiar o escritor homossexual que vive nas cercanias, para evitar as reclamações dele à imprensa durante um evento importante que acontece por ali. Andrés (Eduardo Martinez) é esse homem privado de tudo que lhe define enquanto indivíduo.

Eles estão lotados inicialmente em lados opostos dessa batalha. Lechuga não se isenta de tomar posições, mostrando desde o princípio Andrés como uma pessoa sensível, tratando de nos aproximar substancialmente de seus dramas, do cotidiano paupérrimo, dos contratempos impostos pela intolerância de um sistema que trata os gays como se fossem aberrações. Já Santa é esquadrinhada pela câmera para que percebamos sua tenacidade, a pretensa inflexibilidade de um semblante carregado de tensão. Gradativamente, porém, a gentileza do “encarcerado” quebra essa casca que a reveste de aparente impenetrabilidade, estabelecendo um diálogo. A dureza vai dando lugar à candura, às demonstrações de afeto mútuo (mesmo desconfiado), à empatia que arrefece preconceitos. Esse percurso de transformação não é traçado banalmente, obedece a uma progressão dramática bem construída, do que deriva a sensação de organicidade, sem a predominância de sobressaltos artificiais e/ou facilitadores.

Na medida em que se embrenha nessa amizade improvável, cuja existência, por si, é uma afronta política, Santa começa a expor-se mais como ser humano. Finda a missão de espreitar diariamente Andrés, sentada numa cadeira em frente à sua casa, ela força reinserções no terreno carcomido em que ele mora – aliás, mérito da ótima cenografia. A partir daí, há acesso a facetas encobertas de seu passado. Como resultado da brecha à fragilidade, ela passa a se comportar de maneira intempestiva, às vezes quase como se tivesse um distúrbio de ordem psicológica, tomando atitudes estranhas, fazendo uma espécie de transição, dos ditames da conjuntura político-social à valorização da singularidade, ainda que se isso se dê pela via da rememoração de um sofrimento praticamente definitivo e incurável. Santa e Andrés questiona o regime de Fidel ao mostrar algumas barbáries exercidas por apoiadores, seguindo uma diretriz superior, é bom que se diga, refletindo nos protagonistas os danos então causados.

Valendo-se de um elenco diminuto, uniformemente competente, Carlos Lechuga apela com propriedade à criatividade para fazer daquela localidade interiorana um microcosmo da situação que ele busca confrontar. O rosto de Andrés, combalido pela angústia de não poder existir plenamente, pois castrado pessoal e profissionalmente, é um símbolo da opressão direcionada a diversos opositores. De certa maneira, a proibição imposta ao longa-metragem reforça a sua mensagem principal, porque igualmente se trata de um episódio de asfixia pública de vozes dissonantes. Santa é a pessoa que cria empatia pelo considerado pária, encontrando em sua companhia hesitante um emplastro às próprias dores de existir. A carência da mulher se confunde com amor, tesão, mas não passa de um processo misterioso de ver no outro possibilidades de conexões que transcendam embates ideológicos, baseadas tão e somente no respeito ao próximo, e observar limitações, que fazem de todos nós falíveis.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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