Sinopse
Uma mãe vive com seu filho numa pequena cidade isolada por uma antiga briga entre militares e carteis. Sem perspectivas, a mulher é empregada no cultivo clandestino de maconha. Um dia, ela acaba não voltando para casa.
Crítica
Em Sanctorum existem dois mundos: o concreto e o abstrato. Do ponto de vista narrativo, o primeiro contribui com as pessoas e as dinâmicas brutais. Já o segundo oferece uma ideia um tanto vaga de transcendência, cujo princípio é tornar o conceito de existência complexo ao desatrelá-lo das sinas e dos determinismos. O cinema está repleto de histórias de comunidades desgraçadas por inúmeros poderes. E esse longa-metragem dirigido por Joshua Gil apresenta uma variação do tema, especificamente uma população campesina obrigada a trabalhar em plantações de maconha por carteis que detêm o poder na região. Essa dominação praticamente completa é construída sutilmente, haja vista a cena da polícia negociando pedágio com os bandidos. O diagnóstico é claro: aqueles agricultores estão largados à própria sorte. Eles não têm qualquer autonomia e perspectivas de independência. Nesse cenário, surge a influência do insondável, de forças que podem (re)equilibrar a balança. As pessoas anunciam que estão ouvindo sons estranhos vindos do céu, quiçá um prenúncio de algo ruim (pior?) chegando. A câmera faz diversos passeios aéreos sobre a névoa que cobre boa parte da montanha a fim de nos acostumar à ideia do mistério. A floresta é frequentemente percorrida com o mesmo intuito, o de sugerir que há mais elementos por ali do que supõe a nossa vã filosofia.
É evidente que Joshua Gil deseja arduamente fugir da simples denúncia social. O realizador não parece interessado em desmontar as engrenagens da opressão dos campesinos e tampouco em investigar o que alimenta os opressores. Os traficantes são enxergados pura e simplesmente como homens armados que zelam por jornadas de trabalho proibitivas. Os militares também viram ícones – esteticamente específicos, pois suas roupas os fazem se camuflar na enigmática floresta. Aliás, Sanctorum despersonaliza as figuras humanas em prol da ênfase nas abstrações e nos simbolismos. De modo aparentemente consciente, Joshua Gil se vale somente de arquétipos ou próximo disso – a mãe sofredora, o professor resistente, o militar conterrâneo, a avó que segura as pontas, o menino órfão que chora desesperado mato adentro. E isso serve adequadamente ao universo intangível que vai ganhando protagonismo do longa, mas ao custo de esvaziar o tangível que deveria ser o seu fundamento e a sua estrutura sólida. O filme utiliza uma situação bastante específica de sofrimento (praticamente remontando a uma lógica escravagista) para criar uma fábula sobre as forças inexplicáveis que agem sobre a comunidade isolada pelos homens maus. O resultado oscila muito entre o belo e o entediante.
A imagem do menino à procura da mãe é plasticamente forte, mas de menor intensidade quanto à lógica estritamente humana. Uma vez que Sanctorum subordina o material/terreno às forças etéreas que podem (ou não) agir para balancear uma batalha desigual, ele desgasta a capacidade de aderir aos aspectos mundanos do drama. Em meio a uma construção imagética belíssima, de um desejo incessantemente manifestado de enxergar além do palpável, o filme vai perdendo a sua possibilidade de engajamento sentimental. Pode ser um engano encarar o sublime nesse filme como uma metáfora. Seriam as entidades de fogo representações do ímpeto de resistência dos campesinos? A movimentação insuspeita da natureza seria uma analogia à reação fundamental de homens e mulheres que possuem ligações estreitas com as tradições daquele lugar? Os cachorrinhos negros seriam a manifestação de uma dor infantil que não encontra equivalências? Tendo em vista que metáforas são figuras de linguagem que pressupõem correspondências implícitas entre A e B (neste caso, concreto e abstrato), talvez aqui faça mais sentido encarar os dois mundos como complementares. O maior equívoco aqui é não fomentar uma interdependência profunda entre a tragédia social e o fantástico.
A revolta do meio ambiente, o surgimento do imponderável e as manifestações de algo “mágico” não existem em Sanctorum necessariamente para aludir aos esforços da população cativa da violência. Pode-se interpretar esse revide magnânimo como uma tomada de posição da natureza diante do bem e do mal? Com certeza. No entanto, o que pesa contra essa leitura é a maneira como são estabelecidos os elos entre o concreto e o abstrato. O primeiro dos mundos parece existir simplesmente para oferecer ao segundo uma desculpa palpável. Não nos é permitido, por exemplo, um contato íntimo/duradouro com aquela gente sofrida. O personagem mais escrutinado (ainda assim, pouco) é o professor. Ele fala de revolucionários para as crianças que estão crescendo num meio hostil. Rebelar-se pode significar a morte, mas ainda assim é a única saída viável para a emancipação. Tentando se desvencilhar dos lugares-comuns atrelados às narrativas que abordam frontalmente a violência, Joshua Gil transforma os humildes em meros instrumentos de sua tentativa de conjurar o indefinido. Sobram planos belíssimos de céus estrelados, paisagens parcialmente enevoadas, encostas repletas de árvores recobertas de musgos e casebres com condições praticamente insalubres de sobrevivência. Falta uma ponte menos frágil entre a dor de cada dia e o mistério da existência. Faltam cenas impactantes como a da execução vista impavidamente ao longe, na qual a natureza se apresenta indiferente.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 4 |
Alysson Oliveira | 8 |
Chico Fireman | 7 |
Leonardo Ribeiro | 7 |
MÉDIA | 6.5 |
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