Crítica


8

Leitores


2 votos 9

Onde Assistir

Sinopse

Bayard Rustin nadou contra as correntezas do racismo e da homofobia para mudar o curso da história dos Direitos Civis ao orquestrar a Marcha sobre Washington em 1963.

Crítica

Muito tem se falado nos últimos tempos – felizmente, aliás – sobre a importância de  dar o devido valor e reconhecimento às minorias sociais. São grupos que, uma vez à parte, podem ser vistos como isolados, tratados por décadas como irrelevantes e de forma desrespeitosa, mas que, se colocados em conjunto, podem corresponder até mesmo a um montante mais significativo do que a dita maioria. Ficaram no passado figuras que se imaginavam de autoridade e capazes de proferirem barbaridades como “os em menor número que se curvem aos demais”. Mas até chegarmos a esse ponto, a luta foi intensa – e violenta. É de se imaginar, portanto, quais foram as pessoas capazes de fazer diferença durante esse processo de transformação. Bayard Rustin, por exemplo, foi uma delas. Porém, o peso que carregava não era de apenas um extrato vítima de preconceito. Ele abraçava, ao mesmo tempo, duas exceções a uma ordem até então vista como normativa. Rustin, o filme, portanto se encarrega de investigar os percalços enfrentados pelo cinebiografado não apenas como homem negro, mas também enquanto gay. E o resultado, se não universal, é dotado de tamanha empatia com essas realidades sobrepostas que será impossível ao espectador minimamente consciente não se deixar levar por toda essa tensão e, ao mesmo tempo, reconhecimento.

“No exato instante em que saí da barriga da minha mãe com essa pele preta, também havia de ser homossexual”, afirma ao ser confrontado por ser tanto um, quanto outro. Se sua raça não tinha como disfarçar, quem sabe um esforço para minimizar sua orientação sexual, não a tornando tão evidente, não seria válido, aconselhavam até os amigos mais próximos. Mas se Rustin não fazia questão de esconder a sua cor, por que haveria de distrair os demais dos seus interesses românticos? Até pela posição que ocupa no momento em que é apresentado ao espectador pelo diretor George C. Wolfe. Amigo íntimo do ativista Martin Luther King, imaginava-se ele próprio capaz de arregimentar massas em nome de uma maior igualdade. A sociedade não estava evoluída a ponto de levantar bandeiras pela causa homoafetiva, mas no início dos anos 1960 o debate referente à questão racial se encontrava no centro dos acontecimentos, tão urgente nessa época quanto se percebe nos dias de hoje. O protagonista, portanto, tinha uma missão a cumprir. Mas, como se sabe, era um homem não disposto a se esconder, não importando quão curto fosse o cobertor que lhe oferecessem – se puxar de um lado significasse descobrir o outro, melhor seria arrancar tudo de uma só vez e deixar sua verdade à mostra por completo, sem meandros ou distrações.

É claro que nem todos ao seu redor, sendo-lhes de confiança ou não – algo que apenas os tropeços da vida iriam lhe ensinar – compartilhariam dessa ideia. Quando a pressão se fizesse presente, até mesmo os mais confirmados acabariam por lhe virar o rosto. Mas Rustin não está preocupado com os tombos, o seu foco está na retomada, em mais uma vez levantar a cabeça e olhar para cima. É nesse processo de tombos e recomeços que acaba se envolvendo naquele que seria o maior desafio de sua jornada, ao menos até aquele ponto: a Marcha sobre Washington pelos Direitos Civis de 1963. A responsabilidade pelo sucesso dessa iniciativa estava quase que inteiramente sobre suas costas. Os meios para tanto, porém, eram limitados. O que sobrava era força de vontade. E braços dispostos a estarem ao seu lado. Por mais que esses fossem de meros soldados, enquanto proclamados lideres perdiam tempo discutindo não os rumos do movimento, mas se Rustin, um homem inegavelmente gay, teria condições ou não de assumir essa tarefa. Isso pelo simples fato não do que ele era capaz de fazer e do seu talento em resolver as missões recebidas, mas por quem levava (ou deixava de) para sua cama.

Como se vê, há uma passagem história de inegável relevância como pano de fundo. Porém, o roteiro coescrito pelo oscarizado Dustin Lance Black (Milk, 2008) com Julian Breece (Olhos que Condenam, 2019) a usa como um lembrete do está sendo discutido, ao mesmo tempo em que centra suas atenções nos personagens encarregados por tais movimentos. Ciente dessa dimensão, Wolfe recrutou o excelente Colman Domingo, com quem já havia trabalhado em A Voz Suprema do Blues (2020), para dar conta dessa tarefa, algo que ele faz com impressionante desenvoltura. O Rustin de Domingo é daqueles tipos “maior que a vida” (do inglês “larger than life”), um cara carismático, expansivo, dono de uma energia contagiante. No entanto, há algo além dos dentes que lhe faltam no lado esquerdo do rosto ou a cicatriz que carrega na face: há uma amargura nele, um sentimento que não lhe permite se abrir, se entregar, se apaixonar. Esses dois lados de uma figura tão complexa quanto envolvente se completam através de uma performance gigante, que grita por atenção ao mesmo tempo em que é silenciosa ao lidar com seus traumas mais íntimos. Um desempenho que ganha ainda mais força por estar ao lado de um elenco de coadjuvantes de respeito, que inclui nomes como Chris Rock, Jeffrey Wright, Glynn Turman, Aml Ameen, CCH Pounder, Audra McDonald e Da’Vine Joy Randolph, grande parte em participações rápidas, mas marcantes.

Por mais que possa ser visto – e encarado – como um daqueles “filmes com mensagem”, Rustin sobressai não apenas pela maneira sincera e bastante objetiva através da qual oferece um relato urgente sobre um momento traumatizante da recente história norte-americana, como também pelos talentos que reúne, oferecendo um conjunto bastante acima da média. As pessoas que discriminavam e perseguiam cidadãos comuns apenas pelo tom de suas peles ou por quem escolhiam demonstrar afeto eram as mesmas que, apenas uma ou duas décadas atrás, havia invadido a Europa para libertar os perseguidos pelo regime nazista. É chocante se dar conta não apenas da proximidade destes fatos, mas como tais gestos e condutas no exterior – necessárias e que não podem jamais serem esquecidas – eram, ao mesmo tempo, tão desprezadas quando “em casa”, por assim dizer. Um filme a ser descoberto, refletido e pensado, não apenas como retrato de um passado não tão distante, mas também como um alerta para um futuro que não pode se repetir, seja ao lado ou no em qualquer canto desse mundo tão imenso, mas, ao mesmo tempo, tão pequeno.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deRobledo Milani (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *