Crítica


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Sinopse

Rosa vive no sertão com a mãe a o avô. Sofrendo com a forte seca, ela decide abandonar a família e partir numa viagem solitária, até encontrar Nossa Senhora Imaculada e clamar por ajuda.

Crítica

Cenário 1: Chapeuzinho Vermelho vive no sertão. Preocupada com a miséria que aflige a família, decide sair de casa e se aventurar Brasil adentro, até chegar a Nossa Senhora Imaculada e pedir por ajuda. No caminho, encontra o Lobo Mau, um pedófilo sem rosto, mas consegue se livrar e se reencontrar com a vovozinha, convertida na figura materna. Cenário 2: João e Maria, ou melhor, apenas Maria, parte numa jornada pelas terras secas brasileiras. A menina é tentada por uma mesa farta de doces, bolos e pães de queijo de um pedófilo asqueroso que pretende devorá-la. Ela consegue fugir, mas sem reencontrar o caminho de volta. Descobre que, durante a sua ausência, a mãe morreu. Cenário 3: A pequena vendedora de fósforos vive no sertão. Encarregada de trazer comida à família miserável, sai pelas ruas, ou melhor, pelas estradas de terra. Ela se perde no caminho e delira, tendo visões com homens de barro, e morre de fome. O espírito eventualmente consegue chegar a Nossa Senhora Imaculada, embora o resto da família jamais descubra o que aconteceu à garota perdida e abandonada.

Rosa Tirana (2020) constitui um conto de fadas brasileiro, e também uma cautionary tale, ou seja, uma fábula de precaução sobre os perigos do mundo adulto. Ele herda dos textos clássicos a ideia de uma infância pura e ingênua, além da noção de que aventuras desmesuradas constituem perigo de vida. Obviamente, estas histórias eram concebidas para levar as crianças a obedecerem aos pais através do medo. Em consequência, elas punem os prazeres: a gula de João e Maria, a autossatisfação de Chapeuzinho Vermelho em pegar o caminho mais longo, a preguiça e irresponsabilidade dos Três Porquinhos ou da Cigarra. Trata-se de narrativas concebidas para as crianças a partir de um olhar inegavelmente adulto e didático: os contos jamais se atardam sobre os deleites dos personagens ao transgredirem a norma. Deste modo, não há olhar subjetivo: jamais compreendemos a psique dos protagonistas reduzidos às suas ações. Os contos de fadas constituem um patrimônio fascinante enquanto sintoma de suas épocas, podendo ser estudados pelas mudanças que sofreram na adaptação aos séculos seguintes. O filme baiano também constitui, por sua vez, uma fábula de manutenção da ordem.

Rosa vive numa casa pobre. Apesar da miséria evidente, o avô (José Dumont) diz em voz alta, a si mesmo e ao espectador, que é difícil ser pobre. A mãe (Stela de Jesus) chama a garota, momento em que a imagem muda o foco para... uma rosa. Entendeu? O caráter fabular já simplifica as relações sociais por si mesmo, porém filme vai além. Não basta o avô ser cego, ele precisa usar lentes de contato branquíssimas, apropriadas aos monstros de filmes de terror. Não basta a mãe ser sofrida, ela precisa cantar um lamento aos céus, com o rosto levemente sujo. O sofrimento da família patriarcal se traduz na imagem de uma vela se apagando, com direito ao fade no final. Neste projeto, nenhum significado é claro o bastante que não possa ser sublinhado, explicado, reexplicado, ao limite do paródico. A fantasia caminha no limiar do humor, porém jamais assume o aspecto autoconsciente. Pelo contrário, transparece uma seriedade sepulcral ao seguir uma garotinha de pouca expressividade, poucas palavras, limitada ao arquétipo da criança pura: vestido arrumado, cabelo preso, boneca sob o braço. Rosa nunca brinca com essa boneca, mas é fundamental neste imaginário cristalizado que seja reforçada a sua posição de criança.

Alguns problemas decorrem do tratamento ingênuo. Primeiro, ele se esquece de que estes contos orais eram carregados historicamente de forte violência e potentes leituras psicanalíticas (aqui, talvez a culpa de Rosa pela morte da mãe seria uma boa pista, não aprofundada). O diretor Rogério Sagui elabora uma obra de boas vontades e belas mensagens, porém desconectadas da violência real e simbólica experimentada ao longo da jornada. Segundo, esta leitura do Brasil profundo se encontra muito distante do século XXI. Ao apostar na figura de mãe e avô que apenas lamentam sua sina, e na garotinha que se entrega à morte (metaforicamente, ela parte ao sertão para morrer longe dos olhos da família), resulta num conto conformista. Nunca se sabe ao certo contra quem Rosa luta, ou de que maneira a mãe e o avô poderiam encontrar escapatória. Resta apenas pedir aos céus, razão pela qual a menina clama pela ajuda da santa, e os dois adultos poetizam aos quatro ventos. Neste conto religioso, a pobreza é tratada como uma inevitabilidade, assim como em A Vendedora de Fósforos. Buscando a universalidade da mensagem, dilui-se o conteúdo tipicamente brasileiro: jamais conhecemos exatamente o papel da santa, a função da festa encontrada pelo caminho, nem a inserção das figuras de barro, que ocupam esquetes isoladas e inconsequentes.

Terceiro, e possivelmente o mais questionável dos fatores, se encontre no embelezamento da miséria. Já se discutiu inúmeras vezes o possível fetiche diante do sofrimento alheio (vide a polêmica sobre Abril Despedaçado, 2001) e a “cosmética da fome” face ao espetáculo da violência (caso de Cidade de Deus, 2002). O projeto retrocede nestas discussões através de uma fotografia saturada, imagens da garota miserável contra o pôr do sol, chuvas redentoras e multicoloridas, olhar de crianças gentis que acenam na traseira de uma carroça, e o sono dos puros sob a bela árvore na planície deserta. Na busca por um sertão romântico, sofre com inúmeros problemas de captação de som direto e mixagem, desníveis de luz (sobretudo no monólogo de José Dumont), problemas de montagem (a falta de ritmo no ataque dos monstros de barro) e outras debilidades. Os criadores tentam alcançar um nível de produção distante dos recursos disponíveis (é provável que Abril Despedaçado tenha servido de referência), refletindo o abismo entre o conceito e as possibilidades de viabilização.

Ao final, Rosa Tirana ainda pode ser questionado pela dificuldade de situar o ponto de vista. Na parte inicial, Rosa é deixada em segundo plano, enquanto os adultos assumem a liderança. A partida para ganhar o mundo se torna brusca, visto que jamais tínhamos percebido qualquer traço corajoso, impulsivo ou justiceiro na garota. Em seguida, a câmera se recusa a acompanhá-la, e durante tempo considerável, permanece junto aos familiares, para só então se preocupar com os rumos dela. Contos de fada costumam trazer algum tipo de recompensa emocional, de resgate mágico em modo deus ex machina: mortos ressuscitam, inimigos são punidos e os protagonistas aprendem com seus erros. Rosa encontra breve felicidade ao som da voz potente de Elba Ramalho na trilha sonora, mas o filme não sabe ao certo o que fazer da heroína após conquistar seu objetivo. A fábula carrega evidente teor moral, mas abre mão do desfecho. O que Rosa teria aprendido de seu percurso, ou o que o espectador retiraria desta jornada, para além da constatação da miséria lúdica e ornamentada? O final feliz torna-se bastante amargo.

Filme visto online na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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