Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó)

Crítica

Qualquer texto linear, com começo, meio e fim, seguindo regras tradicionais de ortografia e sintaxe, falharia na tarefa de refletir sobre Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó) (2020). Este vai ser o caso deste texto, vale avisar. O debate estruturado sobre o projeto soa como uma traição aos seus princípios – este seria o provável equivalente de usar a razão para debater a fé, ou o jargão da direita para refletir sobre a esquerda, e vice-versa. O filme dos diretores Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra afirma-se por negação: ele se posiciona contra a linearidade, contra os discursos tradicionais, contra a noção de um cinema “de qualidade”, contra os mecanismos típicos de roteiro, contra a obrigatoriedade da polidez, da educação, do senso comum e dos costumes. A abordagem explora a anarquia tanto nas formas quanto no discurso: para representar um mundo marginal e extremo, apela-se tanto para a violência dos gestos quanto para a violência estética. O letreiro inicial avisa que o filme não é recomendado para epilépticos e pessoas fotossensíveis: a precaução se justifica.

Seria ingênuo apontar que se trata de um filme “tosco”: esta seria uma percepção tão óbvia quanto apontar que O Jardim das Aflições (2017) é um filme de direita, e Democracia em Vertigem (2019), um filme de esquerda. A abordagem vai além: ela se revela espetacularmente tosca, orgulhosamente trash. Nenhuma cena transparece a impressão de ter ficado aquém das intenções dos criadores – pelo contrário, a pós-produção se esforça em sujar, fragmentar e poluir qualquer imagem convencional demais. Este constitui o caso em que a baixa qualidade não representa um problema de produção, tampouco um erro assumido, e sim a busca esforçada e consciente. Trata-se de uma obra bastante coerente consigo mesma, num caso em que a linguagem equivale ao conteúdo. Em última instância, pouco importam as aventuras rocambolescas de Rodson num universo futurista. O imperativo do movimento (o road movie, a jornada de autodescoberta) servem de mínimo recheio para as intervenções, letreiros multicoloridos e narrações com meia dúzia de vozes diferentes. As distorções transformam-se no verdadeiro protagonista, apropriando-se da fábula para traçar uma linha de compreensão em meio ao caos.

Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó) nasce na pós-produção. O material bruto proporciona um suporte inicial para as brincadeiras dos criadores na ilha de edição. Seria tentador descobrir o roteiro prévio, ou acompanhar o making of com as conversas durante a montagem. Nesta dinâmica do artifício enquanto meio e finalidade, cada cena é colorida de vermelho, amarelo e rosa, e então acelerada ou retardada. O som sofre múltiplas intervenções; letreiros com sombras se sobrepõem a colagens amadoras em chroma key; há inúmeras canções, ruídos e demais recursos possíveis a partir de um programa de montagem caseiro. Xavier, Chroma e Sombra operam dentro de uma estrutura baratíssima, onde o humor surge de sua própria existência: quem pensaria em escolher um adulto para o papel da criança, junto de atores de idade semelhante, e aparência descolada, para interpretarem os pais conservadores? Quem teria a coragem de investir na baixa qualidade com tamanha exaltação, correndo o risco de ser simplesmente tomado por um filme ruim (ou seja, incoerente, falhando em alcançar outro registro)? Neste mundo virado do avesso (e depois pintado, colado, recortado), os marginais estão no centro, os pastores da televisão louvam a cocaína, a família tradicional se preocupa com filhos cheiradores de cu e as ciborgues oleosas mergulham no lixo.

A narrativa está repleta de intervenções caleidoscópicas, lisérgicas, assumidamente digitais e contemporâneas. Guardadas as devidas proporções, os cineastas propõem uma adaptação do Cinema Marginal aos tempos de câmeras caseiras, dos filmes sem orçamento, do YouTube e das redes sociais. Os homens no bar bebendo com máscaras de macaco remetem aos personagens de Bang Bang (1971), de Andrea Tonacci, enquanto as personagens femininas descendem de Os Monstros de Babaloo (1971), de Elyseu Visconti. As obras dos diretores dos anos 1970 eram mais maduras em suas referências intelectuais, menos satisfeitas com a própria traquinagem. No entanto, o projeto cearense assume a jovialidade, inconsequência e o misto de liberdade e libertinagem. O trio de autores reivindica o direito de fazer qualquer coisa, sem dever às expectativas do bom gosto. Este gesto, retórico enquanto práxis política, constitui um símbolo de enfrentamento válido em meio a um governo que defende um cinema asséptico e religioso. Embora se aproprie de elementos do Brasil do século XXI (o governo miliciano, a aversão paranoica da classe média à esquerda, a ascensão do poder neopentecostal), a ficção científica o faz na chave da paródia, evitando o discurso propositivo. O filme deseja dinamitar, ao invés de construir algo novo ou encontrar saídas.

Projetos tão descaradamente informais (no sentido estrito do termo) correm o risco da aleatoriedade, ou seja, a impressão de que tudo vale. Os cineastas apresentam dificuldades para sustentar o valor do choque durante a integralidade do longa-metragem: na segunda parte, os truques somente se repetem. Os filtros multicoloridos e os letreiros jocosos perdem o valor de provocação quando aparecem pela quinta ou sexta vez. A anarquia, repetida múltiplas vezes com a mesma linguagem, se converteria em norma? Quanto a margem e o centro, a esquerda e a direita, a ciência e a fé são tratadas com igual deboche, não se produz o senso de equivalência e, portanto, de conformismo? Entretanto, o desprezo pela estrutura não deixa de propor uma nova estrutura. É impossível se dissociar por completo da sociedade, visto que a rebeldia se constrói em relação à norma. Ao discorrer sobre ciborgues oleosas, sapatas deslizantes, marginais catadores de lixo e burgueses cheirando cocaína sobre a imagem de Cristo, representa-se, por oposição, a hipócrita sociedade atual. Enquanto discussão teórico-política, talvez o resultado possua alcance limitado. No entanto, enquanto percepção de que toda forma implica em conteúdo, e produz ideologia por si própria, o resultado vai longe.

Filme visto online na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2021.

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Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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