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Sinopse

Atualmente fragilizado, o rio São Francisco já foi majestoso. Desmatamento das margens, poluição e outros malefícios da ação do homem colocam em risco a existência desse fluxo vital à existência de tanta gente.

Crítica

Neste documentário, os diretores Andrea Santana e Jean-Pierre Duret apostam numa forma clássica de cinema de observação. Eles acompanham uma dezena de famílias de pescadores vivendo em diferentes cidades à margem do Rio São Francisco, entre a Bahia e Pernambuco. Trata-se de homens acostumados à construção de barcos, mulheres empresárias gerenciando uma rede de trabalhadores, vendedores de peixes, jovens seguindo os passos dos pais. Através destes retratos, os cineastas sustentam uma defesa do orgulho da profissão de pescador, mesmo quando a atividade entra em declínio econômico. Eles valorizam o trabalho junto à natureza e destacam os homens e mulheres que vivem dos rios, transmitindo o conhecimento entre gerações. Rio de Vozes (2019) apela a uma conscientização gentil, mais calcada na autovalorização e nas redes de solidariedade entre pescadores do que nas lutas políticas propriamente ditas. O aspecto propositivo do discurso se encontra no incentivo à formação de jovens que honrem a memória dos pais e avôs, seguindo o trabalho iniciado por eles.

Curiosamente, a política institucional se faz ausente do projeto. Embora alguns pescadores reclamem da baixíssima remuneração, ou da exploração por parte de patrões, nenhum empresário, prefeito, governador ou presidente é sequer mencionado nos discursos. Grupos de mulheres e ambientalistas possuem como único objetivo aparente estudar a terra e as águas, sem lutar contra aqueles que os exploram para fins comerciais, sendo os verdadeiros responsáveis pela pauperização destas pessoas. Como agir politicamente em defesa de uma comunidade sem enxergar o sistema mais amplo onde ela se insere? Que incentivos existem para a formação de novos biólogos e estudiosos das plantas? Que medidas práticas poderiam ajudar os pescadores cansados e suas famílias? O orgulho da profissão e a vontade de seguir em frente não bastam, em termos macroestruturais, para garantir a permanência desta atividade. O Rio São Francisco tem se tornado há anos o alvo de projetos controversos em termos ecológicos e econômicos, porém estes questionamentos passam longe do discurso.

O filme traz um humanismo distanciado, do tipo que evita mencionar o nome dos personagens e das cidades onde encontram (até os letreiros finais, pelo menos). Os pescadores jamais se convertem em protagonistas que a câmera possa acompanhar durante muito tempo: qualquer homem ou mulher é rapidamente abandonado para conhecermos o próximo núcleo de personagens. A montagem busca reproduzir a estrutura do rio, avançando sem olhar para trás, sem “se banhar duas vezes na mesma água”, compreendendo a fluidez das histórias enquanto premissa natural. Através desta escolha, produz uma força e uma fragilidade. A força se encontra na noção de protagonismo coletivo: estas pessoas representam muito mais do que suas histórias pessoais, falando em nome de uma classe social numa região específica do Brasil. Santana e Duret acreditam no valor dos testemunhos enquanto histórias globais, ainda que não possuam qualquer fator extraordinário em si – pelo contrário, os diretores demonstram fascinação pelo cotidiano. No entanto, a fragilidade decorre do foco excessivamente amplo da narrativa: os personagens se limitam a apresentações superficiais. Sabemos pouco sobre o passado, a origem, os sonhos, as transformações na trajetória de cada um. Eles se limitam a uma corporeidade, a gestos externos, diários e representativos. Caso a dupla se dispusesse a segui-los por mais tempo, descobriria subjetividades ausentes no resultado final.

Em termos estéticos, Rio de Vozes aposta no naturalismo extremo: o trabalho de direção de fotografia intervém o mínimo possível nas luzes naturais e nas cores; a edição de som permite ruídos, barulhos locais, a intromissão do vento nas conversas; a edição de imagem jamais produz algum corte brusco capaz de chamar atenção ao dispositivo. A direção se aproxima deste ambiente com uma humildade ímpar, sem desejar se impor, nem alterar a dinâmica preexistente. Estamos num terreno do cinema de apreensão, disposto a captar as ações produzidas ao acaso diante das câmeras. Nos poucos casos em que a espontaneidade se restringe (a reunião de jovens, a conversa à noite diante da fogueira), o resultado se torna perigosamente didático, repleto de frases de efeito sobre a preservação da natureza. Por mais que algumas sequências soem estimuladas pela direção, o canto entre avô e neta dentro de um barco resulta mais bem-sucedido do que as conversas protocolares entre adolescentes, intimidados pela presença da câmera e pela necessidade de dizerem algo relevante sobre a consciência ambiental.

O resultado se torna competente dentro do objetivo singelo a que se propõe. Há bons testemunhos noturnos em off, com o som dissociado da imagem, assim como uma competente cena inicial da construção da canoa. O documentário valoriza a noção do tempo, sem apressar o ritmo das cenas, nem dos personagens. Santana e Duret demonstram paciência para o desenvolvimento das ações, evitando encorajar conflitos pelo prazer de registrá-los em imagens. Trata-se de um cinema otimista, solar, sobre movimentos de união ao invés de iniciativas de enfrentamento. Talvez estes dois pontos de vista pudessem se reunir, porém a dupla efetua sua escolha pela conscientização moral e ecológica ao invés do ativismo. Resta um projeto de imagens agradáveis, lineares, sem uma única cena que destoe das demais por sua força, ou por quaisquer descuidos técnicos e de linguagem. Concluída a sessão, o espectador possivelmente não conheça nenhum personagem de fato, nem carregue consigo alguma história específica para fora da sala de cinema. Mesmo assim, ele terá um imaginário amplo sobre a pesca e os arredores do Rio São Francisco enquanto espaço indistinto, de cidades intercambiáveis, munidas pelo amor à natureza e a um modo de vida.

Filme visto no 30º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em dezembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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