Crítica


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Sinopse

Ángel é um paramédico obsessivo e controlador, obcecado pela ideia de ter um filho com a namorada Vanesa. Quando um acidente o torna paraplégico e o relacionamento abusivo se encerra, ele bola um plano para tê-la perto de si novamente - mesmo que ela não queira.

Crítica

Ángel (Mario Casas) tem cara de psicopata. Ele mantém os lábios entreabertos, os olhos serrados, o olhar vidrado nas pessoas, a cabeça projetada à frente, o queixo alto. Em poucos minutos, detectamos um homem evidentemente perigoso, algo que constitui, em si, um problema: o paramédico é apresentado ao espectador enquanto figura perturbada antes mesmo de descobrirmos motivos para tal. (Além disso, já está na hora de o cinema ultrapassar a imagem da “cara de psicopata”, afinal, os verdadeiros psicopatas se parecem com qualquer pessoa ao nosso redor. Mas passemos). Quando Ángel começa a executar seus crimes, em intensidades progressivas – passando do abuso doméstico aos maus-tratos de animais, então ao assassinato propriamente dito -, nada daquilo choca o espectador, a quem se anunciava o caráter nocivo do protagonista desde o início. Caso alguém ainda não tenha percebido a índole do rapaz, a namorada avisa: “Você não tem sentimentos”. O nome do personagem, “anjo”, constitui uma óbvia ironia. O diretor Carles Torras acredita intensificar o suspense ao nos preparar para tudo o que está por vir. Talvez o medo fosse ainda mais intenso se descobríssemos o que o rapaz pode fazer à medida que as ações se desenvolvem.

De qualquer modo, o filme teria potencial para um retrato psicológico complexo a partir do personagem. Remédio Amargo (2020) associa os impulsos brutais de Ángel ao machismo, ao sentimento de posse e ao medo da castração. Ele tem relações sexuais inexplicavelmente agressivas com Vanesa (Déborah François); recusa-se a acreditar que possa ter problemas de fertilidade; espia obsessivamente cada amizade masculina dela. O universo do homem se concentra na potência e na virilidade, concentradas em torno da figura do pênis. Por isso, quando sofre um acidente e se vê preso a uma cadeira de rodas, sem a possibilidade de prazer genital (ainda que possa ter ereções), ele se desespera. Parte deste thriller consiste no pesadelo do macho contemporâneo, perdendo o controle de seu pênis, de seu corpo, da namorada, da casa e das finanças. O macho, figura pública por excelência, se vê privado de sair de casa, enquanto a namorada passa as noites fora. No terço inicial, quando a trama acena ao estudo da neurose masculina, o resultado atinge seu melhor patamar – o mais contemporâneo, e também mais propício ao debate. Infelizmente, a questão sexual e psicológica é abandonada pela narrativa, muito mais preocupada em imaginar todas as maldades que o vilão seria capaz de praticar.

A priori, a figura emasculada de Ángel constitui um psicopata curioso: de que maneira o sujeito em cadeira de rodas, sem o movimento das pernas, poderia matar pessoas, perseguir inimigos, medir forças com adversários não deficientes? O acidente não colocaria o paramédico em posição imediata de vítima? A aparente fragilidade do rapaz constitui outro bom caminho que o filme evita. Saem de cena as chantagens e manipulações, cedendo espaço a uma dinâmica herdeira de Louca Obsessão (1990), através da disputa letal entre duas figuras presas sob quatro paredes. Para adentrar o território específico do perseguidor e das mentes doentias, o cinema teria inúmeras possibilidades de disputa de forças entre Ángel e Vanesa dentro do apartamento. No entanto, os três roteiristas (David Desola, Carles Torras e Héctor Hernández Vicens) possuem imaginação limitada: uma seringa com morfina e anestésico supre todas as necessidades do vilão, enquanto o único perigo consiste na presença inesperada de alguém tocando a campainha, o que ocorre em três cenas seguidas. O estoque infinito de medicamentos, o deslocamento do protagonista sem ser visto e a ausência de pessoas procurando pelos personagens (ninguém busca Ángel após o acidente?) constituem pontos questionáveis da trama.

Remédio Amargo sofre de um problema comum aos suspenses psicológicos comerciais, sobretudo aqueles a respeito de amantes ciumentos perseguindo o amor de sua vida (caso em que também pode ser inserida a obra espanhola): a disposição a abrir mão da lógica em nome das sensações. O roteiro se torna mais rocambolesco e improvável a cada cena. Torras despeja na trama um sem-número de reviravoltas absurdas, contradizendo qualquer construção pregressa dos personagens. O destino oferecido da Ricardo (Guillermo Pfening) beira o humor involuntário, enquanto a resolução do caso Vicente (Celso Bugallo) ocorre num passe de mágica. A produção mantém um nível elegante, com belo trabalho de luz de Juan Sebastián Vasquez, efetuando zooms microscópicos rumo ao corpo de Casas, sugerindo obstinação e obsessão. No entanto, a produção não se decide: apesar da estética sofisticada, com belo trabalho de planos fixos, o roteiro seria digno de um filme B. Enquanto Mario Casas incorpora o vilão caricato, sem hesitação nem variação de registros em sua perversidade, a ótima Déborah François atua como se estivesse num drama realista sobre um casal em crise. Talvez os dois registros se equilibrem. Talvez apenas se oponham e revelem as graves discrepâncias conceituais.

A história de Ángel e Vanesa se encaminha a um inesperado fetiche das paralisações. Sem entrar em detalhes, basta dizer que a trama passa a brincar com diferentes níveis de imobilidade (a paraplegia, a tetraplegia, a anestesia, a inconsciência), promovendo perseguições entre pessoas desprovidas do movimento das pernas. O efeito provocado é mais incômodo (porque exagerado) do que tenso. Os minutos finais, quando uma reviravolta ridícula é introduzida a fórceps, jogam ralo abaixo qualquer coerência que a história tivesse construído até então. O diretor se mostra muito mais interessado em prolongar o máximo possível o mecanismo de vingança do que promover alguma forma de emancipação aos personagens. Neste momento, percebe-se que Torras não possui carinho real nem por Vane, nem por Ángel (ou ainda Ricardo e Vicente): estas figuras se tornam peças de um tabuleiro, no qual o cineasta se esforça em traçar a maior quantidade de movimentos possível. Abrindo-se com a temática de um relacionamento abusivo, o filme termina apaixonado demais pelo potencial dramático destes abusos para enxergar um interesse cinematográfico além da dinâmica destrutiva. O filme não se interessa pelo destino de nenhum deles, contanto que o circo continue pegando fogo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
4
Francisco Carbone
2
MÉDIA
3

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