Crítica


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Sinopse

Os irmãos Elmer e Erik vivem em Copenhagen, em 1967. Tão logo a mãe deles seja levada a um centro médico, por conta de uma grave doença, eles são realocados num centro de adoção, onde terão de reaprender seus papeis.

Crítica

Espectadores mais atentos muito já sofreram nas mãos de cineastas sádicos. Realizadores que, ao ficarem a par de qualquer história trágica com um mínimo de fundo verdadeiro, levantam a necessidade imperiosa de levá-la às telas com a desculpa de servirem como denúncia, quando na verdade se prestam apenas para exercerem o próprio domínio de lidarem com arquétipos tão comuns ao gênero, como a construção do vilão, a origem dos sofrimentos das vítimas, os que se mantém calados e são tão culpados quanto os que provocam diretamente a dor e a tão esperada reviravolta final, acalentada através de angústia e previsibilidade. Pois é exatamente o que se encontra no drama Quando o Dia Chegar, raro longa dinamarquês a chegar ao circuito comercial brasileiro que se não fosse pela severidade da crua abordagem europeia poderia passar tranquilamente como mais um enfadonho conto dos Estúdios Disney, em que os bons só conseguem a salvação após um longo percurso de intensas provações e intermináveis penas.

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Pra começar, os protagonistas são duas crianças, irmãos órfãos de pai – que se suicidou no porão no inverno passado – e que ficam sem ter para onde ir quando a mãe – que trabalha dobrado para sustentá-los e, por isso, mal tem como se ocupar da educação deles – descobre ter um câncer. O único parente próximo, o tio, é um irresponsável sem emprego nem endereço fixo. Cabe aos pequenos, portanto, a assistência do Estado, que os encaminha a um orfanato. E como desgraça pouca é bobagem, o lugar é comandado com punho de ferro pelo diretor Frederik Heck (Lars Mikkelsen), que acredita que tudo que faz é para o bem daqueles pelos quais é responsável. Assim, o que logo se percebe é um descontrole emocional intenso, misto de ira e desprezo em relação aos órfãos. Qualquer pergunta fora de ordem é respondida com um tabefe de derrubar. Barulho na hora do jantar ou descumprimento de ordens prévias merecem castigos que invariavelmente terminam na enfermaria. Isso para não falar dos que são pegos em tentativas de fuga.

Logo que chegam, Erik (Albert Rudbeck Lindhardt), o mais velho, e Elmer (Harald Kaiser Hermann), o caçula de pé torto, recebem o aviso dos demais colegas: “tornem-se fantasmas”. Se o caminho é ser invisível e torcer para que os dias passem o mais rápido possível, é certo que este não será o trajeto trilhado por eles – afinal, se assim fosse o filme não existiria. É por isso que um se tornará o saco de pancadas oficial dos professores, enquanto que o menor, se por um lado será agraciado com uma maior atenção pela única professora do local, também despertará interesse do tutor pedófilo, que quando menos esperam invade o dormitório deles no meio da noite para levar seu escolhido para um “passeio”. Como se percebe, não há meios termos nas situações apresentadas. É tudo preto no branco, malvados terríveis de um lado e sofredores impassíveis do outro. Ou seja, não é difícil saber para qual lado torcer, como se estivéssemos diante de um julgamento sem volta, e não de uma obra cujo debate deveria ser o processo, e não a ausência.

Lars – irmão menos famoso de Mads Mikkelsen – é mais conhecido do público internacional por interpretar o presidente da Rússia na série da Netflix House of Cards (2013-2018). A mesma expressão de descaso e loucura que por vezes ele oferece como vislumbre na composição do oponente político na telinha aqui ganha uma repercussão maior, sem os limites de um contexto mais pé no chão, ainda que igualmente ficcional. Assim, impõe-se como apenas um sádico cujo único objetivo parece ser causar mal e dor nas crianças sob o seu cuidado. Falta-lhe profundidade para criar um personagem multifacetado, controverso ou que ao menos compartilhasse com o público suas motivações. O mesmo pode ser dito da professora interpretada por Sofie Grabol (O Grande Chefe, 2006), que além de aparentar ser a única com coração – afinal, trata-se de uma mulher e, por isso, dita a regra que deve ser a mais emocional, certo? – deixa a cena no momento crucial do desenrolar dos fatos, apenas para retornar mais próximo ao final, como última tábua de salvação. Mas não poderia ter ela feito o que deixa para desempenhar somente no minuto derradeiro muito antes?

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Com um roteiro esquemático e atores adultos estereotipados, Quando o Dia Chegar se salva pela competente estrutura técnica – a fotografia é particularmente interessante, indo dos ambientes claustrofóbicos do início para um horizonte que vai aos poucos se ampliando – e pela dupla de protagonistas mirins. É difícil afirmar qual dos dois está melhor, se o jovem Hermann – seu olhar perdido ao tomar a decisão que selará o destino de ambos é de derrubar qualquer um – ou o rapazote Lindhardt – seu desespero diante dos infortúnios do irmão é igualmente desesperador. Os dois, acima de qualquer outro elemento, justificam essa jornada, impulsionada principalmente pela curiosidade de desfrutar destes novos talentos. Pois, além disso, restam apenas duas horas de angústias calculadas, sofrimentos aguardados e uma mísera redenção final, que como é de praxe nestes casos, dificilmente estará à altura dos pesares enfrentados até ela. E se tais episódios, situados aqui nos não tão longínquos anos 1960, supostamente não mais se repetem, é de se perguntar se pensam que seremos tão ingênuos para não acreditar em contextos similares ainda hoje, mesmo que em cenários ou condições diversas?

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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