Crítica


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Sinopse

Os problemas de fertilidade ameaçam a estabilidade da vida matrimonial de um casal que sonha em ter filhos. Para espairecer, eles decidem tirar férias em um resort de Sardenha, onde, inesperadamente, as coisas apenas pioram.

Crítica

O maior mérito desse drama austríaco é manter-se sóbrio, embora não frio, ao desenrolar o novelo de uma relação obstruída. Alice (Lavinia Wilson) e Niklas (Elyas M'Barek) tem frustrada mais uma tentativa de engravidar. A notícia da falta de batimentos cardíacos no feto em estágios iniciais de desenvolvimento provoca um desânimo bem apontando como sintoma do estado de espírito dos personagens. Eles estão visivelmente cansados de protocolos médicos, cotidianos sexuais burocráticos, enfim, de tudo o que diz respeito aos esforços para vencer as barreiras biológicas. O cinema está repleto de filmes com figuras parecidas, colocadas em rota de colisão por conta da fadiga e, principalmente, da frustração. A cineasta Ulrike Kofler não foge a situações que podem soar como lugares-comuns, pelo contrário, as encara de peito aberto, ao menos tentando substanciá-las com nuances, evitando que a encenação escrache demais sentimentos e impossibilidades, investindo num percurso emocional ao qual somos convidados gentilmente como testemunhas privilegiadas.

Embora o casal rume de férias à paradisíaca Sardenha, na Itália, ao perceber que chegou a hora de pensar numa configuração familiar diferente, há a limitação financeira frequentemente colocada como barreira. Sem cobertura do plano de saúde, não têm como continuar tentando engravidar. De modo análogo, a casa em construção – estrutura que adquire contornos obsoletos, pois parte de um plano de vida prestes a ser deixado de lado –, pede insumos que financeiramente sobrepesam o orçamento doméstico. Fica muito claro que os protagonistas de Quando a Vida Acontece não estão lidando apenas com as consequências de suas decisões, justamente porque existem coisas alheias à sua capacidade de escolha que são decisivas. Assim como a falta de verba e os mistérios da infertilidade, desejos, impulsos, respostas intempestivas e/ou meramente reflexas se avolumam. Todo esse turbilhão é colocado à disposição do espectador nas frestas das conversas enviesadas, nas hesitações antes ou depois de colocações que não caem tão bem. É bonito esse processo feito de sutilezas.

Os vizinhos são contrapontos um tanto óbvios, mas funcionais. Em busca de paz, Alice e Niklas se submetem à convivência com a família tradicional, feita de pai provedor, mãe dona de casa e dois filhos. Ulrike Kofler quase perde a mão ao estabelecer paralelos explícitos e assim contradizer a sobressalência da delicadeza com que distribui os elementos dramáticos. O principal destes concerne ao incômodo de Alice sempre que a mulher da porta ao lado se expressa como mãe, algo repetido em outras ocasiões, vide a censura diante do menino absorto no dispositivo eletrônico. Durante um bom tempo de Quando a Vida Acontece, a realizadora se esforça, mantendo a elegância, é bom dizer, para trazer a essa equação complexa a máxima “a grama do vizinho é sempre mais verde”. Um sinal disso, a falta de apetite sexual de Niklas, cenário que gera outra barreira matrimonial, e o flagrante dele observando com lascívia a moradora da casa à esquerda de seios à mostra. A despeito da insistência neste, o tópico acaba servindo para introduzir a noção de insatisfação generalizada.

A potência de Quando a Vida Acontece não está na convergência aos poucos rompantes, mas no caminho feito de indícios costurados com artesania. Ulrike Kofler faz da proximidade de Alice com a pequena Denise (Iva Höpperger) uma dinâmica convencional, saindo-se melhor ao associar a adulta assombrada pela impossibilidade e o adolescente de poucas palavras. O que une esses personagens é a inadequação, as dores interditadas, a dificuldade de exteriorizar posicionamentos e sentimentos. Mais do que criar um filme de cunho fatalista ou, noutro sentido, ler os protagonistas como corajosos combatentes em prol do elo afetivo a ser resgatado (ressignificado?), a cineasta foca num trajeto humano de delineamentos críveis, sendo bem-sucedida por tratar com tintas singulares uma temática tão amplamente utilizada pelo cinema. Diferentemente de outros enredos que se valeram de panoramas parecidos, este não persegue desesperadamente as respostas, talvez por partir do entendimento de que as tentativas prevalecem sobre chegar ou não aos lugares almejados.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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