Crítica


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Sinopse

A bordo do ônibus Priscilla, as drag queens Anthony e Adam e a transexual Bernadette partem de Sydney rumo a Alice Springs, cidade remotamente localizada num deserto australiano. Elas foram contratadas para fazer um show.

Crítica

A monotonia terrosa do deserto australiano é quebrada pelo fulgor – literal e metafórico – do ônibus batizado de Priscilla: A Rainha do Deserto. Há uma intensa simbologia no ato de pintar o veículo de lavanda, tornando-o chamativo e capaz de romper os padrões vigentes na paisagem, na prática cobrindo a manifestação preconceituosa dos moradores tacanhos de uma cidadezinha. Portanto, passa pela estética a valorização dessa bem-vinda ruptura de modelos, emanada do âmbito comportamental e existencial. Tick/Mitzi (Hugo Weaving) é contratado para se deslocar de Sydney a uma pequena localidade que o contratou para fazer apresentações. Ele convida a também drag queen Adam/Felícia (Guy Pearce) e a mulher trans Bernardette (Terence Stamp) para embarcar na aventura. Nesse autêntico road movie com uma singular energia destrambelhada, no qual os episódios vão se acumulando sem aferrar-se demasiadamente a este ou àquele itinerário tão específico, alguns assuntos importantes são apresentados e surge uma estridente celebração da emancipação e da genuinidade.

Existem passagens de forte teor poético em Priscilla: A Rainha do Deserto, com destaque às vezes em que Felicia surge deslumbrante sobre o ônibus, dublando óperas, sentada num sapato de salto gigante e com tecidos esvoaçantes capazes de fazer a caravana ser avistada a quilômetros. O glamour tempera a rotina modorrenta caracterizada por animais rastejantes, sedimentos imóveis e, quando muito, a presença de outros humanos que não chegam a afrontar a inércia da natureza. O cenário representa os componentes arraigados, enquanto Mitzi, Felicia e Bernardette são o novo, algo que oferece uma linda alternativa ao tédio estabelecido. Como em todo bom filme de estrada, o caminho é mais importante do que o destino. É nesse decurso que o cineasta Stephan Elliott aponta sua câmera aos diferentes jeitos como as pessoas reagem aos raios de luz que atravessam os cotidianos repetitivos das paragens situadas entre distâncias inóspitas. A boneca inflável voando e logo se libertando à vastidão dos ares é uma imagem com grande intensidade poética, um sintoma de tudo.

Obviamente, se fosse realizado nos dias atuais, Priscilla: A Rainha do Deserto seria devidamente questionado sob a ótica da representatividade. Afinal de contas, estamos falando de uma mulher trans e duas drag queens interpretadas por homens, especialmente, cisgênero. Todavia, como fruto de uma época bastante específica, a metade dos anos 1990 em que personagens homossexuais começavam a ser apresentados com menos estereótipos negativos, o filme ainda carrega uma potência disruptiva considerável. Terence Stamp está maravilhoso como Bernardette, aquela cuja conduta é uma soma de classe e rabugice – aliás, Stamp mantém um semblante deliciosamente sisudo até nas apresentações repletas de plumas e paetês. Guy Pearce não fica para trás como a drag caçula, um tanto irritante dando pouco sossego aos colegas, mas corajosa para lançar-se afrontosa em circunstâncias claramente perigosas à sua integridade física. E Hugo Weaving dá vida a quem carrega um segredinho que ajuda a trazer elementos à tona tão logo esse comboio chegue aonde deveria.

Uma das coisas mais bonitas após o percurso lírico em que os protagonistas demonstram a necessidade de inundar de cores um mundo acostumado com o tédio do monocromático, é a forma como Stephan Elliott observa a relação de Tick com o filho. Apavorado diante da probabilidade de ser rejeitado pelo menino, ele novamente (como talvez tenha feito tantas vezes ao longo da vida) esconde a energia fervilhante que faz sua arte retumbar espalhafatosa nos palcos, chegando a vestir-se de acordo com o senso comum da heteronormatividade. É comovente a naturalidade com a qual o garoto se refere à expectativa de ver o pai travestido e dublando ABBA nos palcos. Em outro instante, a menção infantil à possibilidade do sujeito encontrar um namorado emociona o histriônico companheiro de viagem. A excelente trilha sonora, os figurinos exuberantes, a valorização do deslumbrante contrapondo a chatice da “normalidade” instituída e, principalmente, a sensibilidade com a qual passa por temas potencialmente dolorosos faz de Priscilla: A Rainha do Deserto uma bela ode à liberdade.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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