Crítica


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Sinopse

A luta de uma camponesa que aos 54 anos decide quebrar paradigmas e cursar direito em uma universidade pública. Ela precisa conciliar o cotidiano numa propriedade agrária familiar, assembleias e reuniões em movimentos sociais.  

Crítica

Uma das principais qualidades deste filme escolhido para inaugurar o primeiro Festival Internacional de Cinema de Goiânia é que, a partir de sua protagonista, ele fornece um painel atraente das lutas femininas nos movimentos sociais. Nem por isso particulariza demais (o que tiraria a sua força coletiva) e tampouco torna tudo genérico (o que enfraqueceria o retrato humano). Portanto, em Primavera Púrpura há um equilíbrio fundamental entre o quê a trajetória da militante Rosângela Piovezani representa e as singularidades de sua vivência dentro de várias esferas. A cineasta Silvana Beline opta pela estrutura do documentário observacional, ou seja, faz da câmera uma testemunha aparentemente invisível que tenta não interferir no cotidiano que está acompanhando. A protagonista é inicialmente vista na sua rotina doméstica: tratando dos animais, preparando o solo que será semeado, colhendo os frutos que a terra já deu, interagindo com a família e os amigos. Mas, curiosamente, não há uma preocupação quanto à definição dos papeis ocupados por cada pessoa ao redor. A ênfase do longa-metragem está colocada nessa jornada pessoal que espelha uma luta comunitária e ampla. Rosângela integra o movimento de mulheres camponesas que são contrárias à reforma previdenciária.

Historicamente, os movimentos sociais de origem rural foram vitais à resistência contra as arbitrariedades políticas e iniciativas que desprivilegiam a classe trabalhadora. Basta pensarmos nas ligas camponesas que floresceram entre 1955 e 1964. Com a queda do então presidente João Goulart e a instauração de uma ditadura civil-militar que desgovernou o Brasil por 21 anos, essas organizações foram duramente reprimidas até a asfixia de várias delas. Portanto, quando nos deparamos com as perambulações de Rosângela pela Praça dos Três Poderes em Brasília ou assim que a vemos militando no interior das comissões parlamentares que estabelecem diálogo com os movimentos sociais, existe ali um lastro histórico que fornece sustentabilidade. No entanto, Primavera Púrpura não evoca esse alicerce histórico, perdendo aí uma oportunidade valiosa para situar as reivindicações atuais, não como uma resposta ao desmonte colocado em prática a partir o golpe desferido contra Dilma Rousseff em 2016, mas como algo que faz parte do tecido social de um país desigual. Mesmo assim, o filme consegue realçar a força feminina no combate à precarização da classe trabalhadora. E isso acontece especialmente quando testemunhamos reuniões de grupos femininos organizando a resistência.

Primavera Púrpura se beneficia do fato de ter uma ótima personagem principal. Mulher aguerrida e de orientação progressista, Rosângela é acompanhada no exercício de suas atribuições domésticas – numa estrutura que parece colaborativa –, na defesa de ideias em assembleias e outros encontros de lideranças, bem como na universidade em que cursa Direito. Ela leva a sua experiência como militante/camponesa para a instituição pública de ensino, assim permitindo uma retroalimentação: fica entre aprender e oferecer-se ao aprendizado dos demais alunos e dos docentes. E nisso há outra porta escancarada que não é transposta pelo filme. Silvana Beline não se detém no fato de a universidade ser pública (o que faz toda a diferença, inclusive ao discurso político) ou mesmo enfatiza esse intercâmbio que permite à aluna também ensinar. Fiel aos pressupostos do documentário observacional, a cineasta prefere contemplar a atuação de Rosângela nesse espaço de saber e deixar à disposição do espectador alguns indícios do que poderia ser melhor aprofundado. Além disso, não há uma análise funcionalista das estruturas retratadas, ou seja, nada de esclarecer como tudo funciona. Nesse sentido, são evitadas as explicações sobre as várias organizações da Marcha das Margaridas.

As cenas mais impactantes de Primavera Púrpura são aquelas em que Rosângela Piovezani é encarada como um ser dotado de consciência política em marcha contra os mecanismos de opressão. A mobilização da protagonista (e das companheiras) se dá em torno da necessidade de barrar a reforma previdenciária que ameaça o futuro da classe trabalhadora. Discursos em plenário e falas em afetuosas reuniões de mulheres são situações utilizadas pela cineasta para sublinhar a capacidade de raciocínio, a consistência retórica e a habilidade de articulação polícia da protagonista. Rosângela é uma personalidade atraente, sobretudo aos espectadores que comungam de sua ideologia progressista, com os quais compartilha ideias e premissas políticas. No entanto, posicionamentos à parte, ela serve como um modelo de perseverança. Afinal de contas, alguém que se dedica tão fervorosamente a uma (ou a várias) causa é passível de simpatia. Felizmente, o filme sabe o que fazer com a personagem, mesmo perdendo oportunidades valiosas para situa-la dentro da tradição de luta camponesa ou para melhor compreender a importância (íntima e coletiva) de suas atitudes. E o filme escancara suas posições e afinidades, ou seja, mesmo observacional, o documentário não pretende se isentar.

Filme visto durante o 1º Festival Internacional de Cinema de Goiânia, em maio de 2022

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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