Crítica


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Sinopse

Enquanto trabalha para desenvolver seu mais novo álbum, a cantora e compositora PJ Harvey passa por epifanias criativas e busca por novas inspirações. Documentada de perto, trilha uma jornada intimista ao redor do mundo para reunir todas as influências possíveis em sua próxima criação.

Crítica

Um documentário sobre a beleza do processo. No caso, a realização do álbum The Hope Six Demolition Project, de PJ Harvey, britânica considerada uma das mais importantes artistas de sua geração. No começo, a vemos transitando por uma região empobrecida, refletindo em off sobre a miserabilidade, especificamente a vala de esgoto como uma aberração que a humanidade ainda permite existir. Na companhia do fotojornalista Seamus Murphy, diretor de PJ Harvey: Um Cão Chamado Dinheiro, ela transita por mundos bastante distintos do subsolo londrino no qual constrói uma espécie de aquário a fim de permitir que pequenos grupos testemunhem a construção do disco inspirado por tais andanças. Então, como seiva, surgem as viagens da artista em busca de contato com culturas e realidades que escapam ao seu cotidiano. Não fica muito claro se a expedição é, antes de qualquer coisa, fruto da vontade de conectar-se ou mecanismo por meio do qual colhem-se histórias e memórias ao trabalho futuro. Essa falta de definição quanto à ordem de prioridades é um ruído considerável. Afinal de contas, o disco advém das andanças ou a finalidade as pressupõem como dispositivo?

Gradativamente dando ênfase à instigante investigação das sonoridades, PJ Harvey: Um Cão Chamado Dinheiro fornece subsídios para entendermos a metodologia como o objeto principal do filme. PJ Harvey é vista repetidamente afinando acordes, repassando letras inspiradas em suas jornadas, além de brincando com os tarimbados colegas músicos. Enfim, há um deleite nessa transformação da matéria-prima colhida nos campos em arte a ser consumida em larga escala. A presença dos visitantes que observam atentamente esse movimento dentro do aquário é apenas uma rubrica não tornada uma camada complementar. Estaria aquela gente realmente interessadas no conteúdo político das palavras da artista mundialmente conhecida e, assim, conectada de alguma forma com a realidade aterradora de tantos, ali transmutada ao vivo em verso e canção? Seriam meros voyeurs atraídos pela experiência estética de assistir a uma obra em progresso de construção? Estariam basicamente motivados pela peculiaridade da proposta disponível? Não há questionamento dessa ordem. Mais do que encontrar respostas, a falta de curiosidade sobre isso acaba esvaziando uma nuance.

PJ Harvey: Um Cão Chamado Dinheiro se equilibra tropegamente entre duas vias de sentidos opostos. Às vezes, encara a realidade dura de regiões como o Kosovo e a parte menos abastada da capital norte-americana, demonstrando empatia e uma vontade de denunciar. Há simetrias entre territórios aparentemente distintos, mas unificados pela força do capitalismo (o tal cão chamado dinheiro), avassalador aos que menos podem. Noutras, as ocasiões predominantes, pois numerosas, apresentam fascínio pela investigação do processo artístico, vide PJ Harvey e os demais músicos tentando encontrar a forma almejada de transformar ideias em sons. E a segunda possibilidade de abordagem acaba sobressaindo pelo tempo a ela conferido, bem como em virtude de algo de extrativista permeando as viagens. Em vez de seguir ponderando a respeito das dificuldades enfrentadas por aquelas pessoas, o filme prefere mostrar como a protagonista se encantou diante das inúmeras oportunidades sonoras encontradas no caminho, adiante as utilizando como matéria-prima. PJ Harvey surge deslumbrada com vários instrumentos peculiares, subsequentemente vista em estúdio os aludindo/emulando.

PJ Harvey: Um Cão Chamado Dinheiro melhora ao assumir-se um documentário sobre a gravação de The Hope Six Demolition Project, praticamente deixando de lado os visitantes convidados – embora negligencie as afinidades entre a artista visitante e os não menos confortáveis visitantes da artista – revelando o que pode ser visto como homenagem/reverberação por alguns e apropriação por outros. Nesse percurso fica evidente o desalento frente ao desemparo, à indigência de nações subdesenvolvidas e aos espaços marginalizados em nações hegemônicas, como os Estados Unidos. Seamus Murphy tenta ressaltar a poesia, mas utiliza prioritariamente imagens de homens, mulheres e crianças em situações desfavoráveis como ilustrações. Somente próximo ao encerramento há um comentário relativo à Donald Trump e tudo de nefasto que ele representa. É um vislumbre rápido, reafirmação do derivado de figuras similares, estas levadas ao poder e que, por suas ideias supremacistas/conservadoras/negacionistas/fascistas, tendem a contribuir ao alargamento dos abismos sociais. É uma mera nota de rodapé num filme oscilante, claramente envolvido pela magia da criação.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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